segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

BARBARA EHRENREICH “Abaixo a ditadura do pensamento positivo” ( 2009 )



Escritora americana fala que, em vez de auxiliar, a corrente da autoajuda pode deixar as pessoas ainda mais culpadas e infelizes

Maíra Magro



A jornalista e escritora americana Barbara Ehrenreich odeia o chamado pensamento positivo. A implicância começou quando foi diagnosticada com câncer de mama, oito anos atrás, e se viu bombardeada por pessoas, livros e sites afirmando que teria que encarar a doença com otimismo, pois poderia aumentar as chances de cura. O episódio resultou no livro “O Lado Ruim das Coisas: Como a Promoção Incansável do Pensamento Positivo Prejudicou a América” (tradução livre do original Bright- Sided: How the Relentless Promotion of Positive Thinking has Undermined America), que acaba de ser lançado nos Estados Unidos.

"O Brasil tem algo de muito especial, que não 
tem a ver com otimismo, mas com alegria. 
Nos EUA, primeiro as pessoas teriam que 
ficar bêbadas para agir assim”

A ex-colunista do “The New York Times” e da revista “Time” ampliou o campo de análise e constatou que o excesso de positivismo atrapalha a economia, a política e a sociedade como um todo, porque faz com que as pessoas fiquem mais individualistas, egoístas e, em última instância, infelizes. Aos 68 anos, divorciada, uma filha e dois netos, a premiada autora de 20 livros, que também assina grandes reportagens para a revista “Harper’s”, afirma: “O melhor a fazer quando se recebe um diagnóstico de doença grave ou se perde o emprego, por exemplo, é encarar a realidade, descruzar os braços e agir rápido. Aí sim o resultado poderá ser muito positivo.” Na entrevista a seguir, Barbara, que vive em Alexandria, Virgínia (subúrbio de Washington), nada contra a corrente da autoajuda.

“Essa ideologia é terrivelmente individualista. 
Os livros de autoajuda nunca perguntam como seus desejos
podem entrar em conflito com os do outro"
ISTOÉ – Por que a sra. odeia o pensamento positivo?
Barbara Ehrenreich – A primeira vez que tive contato com o pensamento positivo como uma espécie de ideologia organizada foi quando eu estava tratando de um câncer de mama, oito anos atrás. Estava em busca de informação e apoio, então entrei em todos os sites na internet, comprei livros, mas não encontrei o apoio que eu queria. 

Ao invés disso, recebi a instrução de que eu deveria ser muito positiva a respeito de minha doença. Que, na verdade, eu deveria tomála como uma coisa boa, que iria, no final, me tornar mais sensível, mais espiritual. E que, se eu não fosse positiva, eu morreria – embora não dissessem isso diretamente, essa era a mensagem. Aquilo me deixou furiosa. Era a pior coisa que já tinha acontecido comigo e me falavam para pensar que era uma coisa maravilhosa.

ISTOÉ – Como a sra. reagiu e que tipo de apoio esperava?

Barbara Ehrenreich – Por sorte, não caí nessa. Porque, se você cai, tem que lutar não somente para aguentar os tratamentos terríveis, mas também fazer um esforço enorme para pensar positivamente. Abaixo a ditadura do pensamento positivo. É como ter uma segunda doença. Queria, sim, ter participado de um grupo em que as mulheres assumissem que não gostavam do que estava acontecendo, mas que tivessem vontade de encontrar formas de mudar as coisas. No passado, por exemplo, os médicos costumavam fazer operações horríveis, como mastectomias radicais, que prejudicavam os movimentos do braço. Feministas e ativistas da saúde protestaram e mudaram isso.

ISTOÉ – Em que outras circunstâncias o pensamento positivo pode ser ruim?

Barbara Ehrenreich – Vimos isso claramente com a crise financeira. Estamos acostumados a ouvir que, se pensarmos positivamente, as coisas boas virão. Muita gente pobre ouve isso nas igrejas evangélicas: Deus quer que você seja rico, Deus quer que você tenha uma casa maior. E aí, se alguém lhe oferece uma hipoteca que pareça milagrosa, que você não tenha que provar renda ou pagar um valor de entrada, isso é visto como uma bênção. 
Esse tipo de pensamento já arruinou muitas vidas. Nos níveis mais altos do mundo empresarial, também havia essa ideia de que nada poderia dar errado. Se algum funcionário levantasse alguma dúvida, seria mandado embora, porque não queriam trabalhar com pessoas negativas. Em 2006, no agora defunto Lehman Brothers (banco de investimentos americano que faliu no ano passado), o chefe da divisão de imóveis disse ao CEO que estava muito preocupado com a possibilidade de quebra. E esse cara foi demitido. As pessoas não podem continuar se autoenganando continuamente sem correr sérios riscos.

ISTOÉ – Como isso se relaciona com o Brasil, onde as pessoas são consideradas, em pesquisas internacionais, otimistas e felizes?

Barbara Ehrenreich – O Brasil tem algo de muito especial a seu favor, que não tem a ver com otimismo ou felicidade. Tem a ver com alegria. A cultura brasileira preservou instituições e costumes que permitem que as pessoas expressem a alegria coletiva. Estive no Rio de Janeiro há alguns anos, muito brevemente, e estava em Copacabana quando uma escola de samba passou. Naquele momento, todo mundo na praia, todo tipo de gente, de todas as idades, começou a dançar, as pessoas se divertiam muito, sem nenhum tipo de constrangimento. Aquilo foi muito encantador e estimulante para mim. 
Nos Estados Unidos, primeiro as pessoas teriam que ficar bêbadas para agir assim. A gente não tem uma quantidade suficiente de ocasiões para isso. É uma coisa muito especial que o Brasil e outras culturas têm a oferecer para o mundo: sim, nós podemos nos divertir muito.

ISTOÉ – O pensamento positivo tem alguma influência nessa forma de ver as coisas?

Barbara Ehrenreich – A ideologia do pensamento positivo é terrivelmente individualista. É só você que tem que mudar, o mundo não. Os livros de autoajuda nunca perguntam como seus desejos podem entrar em conflito com os do outro. Outra questão é que, no pensamento positivo, ver o mundo de forma ampla, pensar no que ele está fazendo com você, é visto como uma tentativa de encontrar uma desculpa para seus problemas. Se você pensa que seus problemas se devem à discriminação racial ou ao fato de você ter nascido pobre, isso não passa de uma desculpa, porque você tem tudo para ser bemsucedido e superar qualquer coisa.

ISTOÉ – Como isso afeta a cabeça das pessoas?
Barbara Ehrenreich – Dá muito trabalho ser positivo o tempo todo. Se você lê esses livros de autoajuda, aprende que tem que acordar, recitar afirmações para si mesmo, colocar um quadro na parede e pregar nele figuras do carroe da casa que quer… 
É muita energia mental. E as pessoas que praticam isso acabam se afundando ainda mais na própria culpa. Se você contrata um coach para ajudá-lo a conquistar uma atitude positiva que pensa ser necessária para ter sucesso no mundo e isso não acontece depois de algumas semanas, a culpa recairá sobre você. 

O coach dirá que não está se esforçando o suficiente, que tem algo dentro de você bloqueando o caminho.

ISTOÉ – Através da obrigatoriedade do otimismo se chegaria à culpa e à infelicidade?

Barbara Ehrenreich – Sim. E a parte mais cruel é você culpar as próprias vítimas, que são pegas em situações muito difíceis de suas vidas – seja enfrentando um câncer, seja após uma demissão. Fiz uma pesquisa com executivos demitidos. Nos Estados Unidos, as pessoas que perdem seus trabalhos podem se tornar pobres muito rapidamente, porque ficam sem plano de saúde e sem crédito. 
Quando eu ia aos encontros feitos para pessoas demitidas, via a dificuldade delas em se reprogramar para transmitir e enxergar internamente toda essa alegria.

ISTOÉ – Por que os livros de autoajuda são tão populares?

Barbara Ehrenreich – Vou dar um exemplo. Um estudo recente mostrou que desde 1972 as mulheres estão cada vez mais tristes nos Estados Unidos e em outros países industrializados. Você lê isso e pensa: talvez eu não seja tão feliz como deveria ser. E, então, adivinha! Imediatamente após a publicação do estudo, lançam um livro (que comprei) chamado “Encontre o Melhor Momento de Sua Vida Agora: o que as Mulheres Mais Felizes e Bem-Sucedidas Fazem de Diferente” (tradução livre). 
É um livro típico de autoajuda, com testes de personalidade e anúncios de outros produtos que você pode comprar. Ou seja, o problema é criado e depois se oferece uma solução.

ISTOÉ – Como escapar?

Barbara Ehrenreich – Enfrentando a realidade. É claro que seria ridículo achar sempre que tudo vai dar errado, ficar todo o tempo considerando possíveis infortúnios, pensando sobre todos os seus defeitos e coisas assim. Mas por que não tentar olhar para o mundo, tanto quanto possível, como ele é? E ver quais são as oportunidades e os perigos, e aí tentar descobrir o que fazer a respeito deles, seja o aquecimento global, seja o desemprego?

ISTOÉ – Não existem momentos em que o pensamento positivo pode ajudar,como na superação de uma depressão?

Barbara Ehrenreich – A depressão é uma doença séria, que requer algum tipo de intervenção, como terapia ou medicação. Você não pode simplesmente passar panos quentes dizendo: pense positivamente. Não funciona. Um fato curioso é que nos Estados Unidos, berço do pensamento positivo, consumimos dois terços do mercado global de antidepressivos. 
Não sei bem como usar as pesquisas internacionais sobre felicidade, mas os Estados Unidos não se saem bem nelas. Há algo de errado nisso.

ISTOÉ – As pessoas estão menos tolerantes com a infelicidade?

Barbara Ehrenreich – Um dos grandes corolários disso tudo é que ninguém quer estar em torno de pessoas negativas, reclamonas, choronas ou vítimas. Elas se tornaram o equivalente moderno dos pecadores.

ISTOÉ – De onde surgiu a ideologia do pensamento positivo?
Barbara Ehrenreich – É uma coisa muito americana, que vem do princípio para o meio do século XIX. Tenho uma certa simpatia pelas pessoas que começaram isso porque eram rebeldes contra o protestantismo calvinista da época. Elas estavam dizendo: não somos todos pecadores miseráveis, não estamos todos fadados à punição eterna, este é um país cheio de oportunidades, vamos pensar de forma diferente. Levando em consideração a situação com a qual estavam lidando, não era uma proposta ruim. 

Mas, no século XX, é como se o pensamento positivo tivesse se tornado uma nova forma de calvinismo, uma nova forma de culpar a si mesmo. Em vez de investigar sua alma constantemente em busca de pecados, você revista sua mente em busca de pensamentos negativos, para expulsá-los.

ISTOÉ – Como isso evoluiu?

Barbara Ehrenreich – O pensamento positivo decolou nos anos 80, com as grandes demissões no mundo corporativo. As empresas começaram a promover esses eventos sobre motivação porque, primeiro, não queriam pessoas reclamando sobre a instabilidade de seus empregos, e, segundo, queriam enfiar mais trabalho nas pessoas que sobreviviam às demissões. Foi nessa época que isso se tornou um grande negócio.


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quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

A Autoajuda e a Medida da Felicidade ( 2009 )


Nas prateleiras das lojas ou nas páginas da internet há inúmeras opções de manuais repletos de técnicas "indispensáveis" para que as pessoas resolvam sozinhas seus problemas físicos e psicológicos; nesse contexto, a gerência de si mesmo é vista como exercício de cidadania.

Rachel Viviani Silveira

03/11/2009

Conceitos-chave

- Os textos de autoajuda se tornaram artigos oferecidos frequentemente na internet, nas bancas de revistas, prateleiras de livrarias e até supermercados. As publicações trazem desde sugestões para administrar o orçamento até dicas de intervenções cirúrgicas estéticas, receitas culinárias, indicações para os cuidados diários com a saúde e de como manejar relacionamentos profissionais e afetivos.

- Na maioria dos casos, as informações assumem conotação "científica"; mas as teorias, excessivamente simplificadas, costumam ser utilizadas fora do contexto histórico e teórico, servindo como justificativas teóricas para a proposta defendida. Embora se proponha a aumentar a capacidade de auto-observação do leitor e apregoe o objetivo de ajudá-Io a fazer escolhas melhores para si, o gênero escamoteia o fato de que grande parte das angústias individuais tenha origem social.

Para Epicuro, na Grécia Antiga, a "vida boa" era considerada privilégio e recompensa dos que emprenderam a longa e pacienciosa busca pelo aprimoramento físico e moral. Nas sociedades contemporâneas, marcadas pela velocidade, providas de mecanismos massificados de transmissão de valores e empenhadas em legitimá-Ias com eficácia, a satisfação é anunciada como acessível para muitos. Não há mais privilégio. Somos informados, de diversas maneiras e a todo o momento, de que essa vida boa é possível e se pode chegar a ela de forma fácil e rápida.

Mapas para atingir esse estado encontram-se à venda aos milhares: a literatura de autoajuda surge como importante divulgadora de caminhos simples e fáceis para a realização de nossos projetos de felicidade. Grande parte dessas publicações aponta a vida saudável como um ideal a ser alcançado.

No Brasil, são produzidos em abundância manuais - com informações embasadas em pesquisas científicas recentes ou teorias já estabelecidas - que prometem ensinar as pessoas a organizar e a gerenciar a manutenção da própria saúde. Eles estão em livrarias, bancas de jornal, casas de produtos naturais, supermercados. A vida saudável é tratada em coleções de bolso, artigos e reportagens de revistas femininas e jornais de grande circulação ou ainda em pequenos artigos de jornais de bairro, escritos em linguagem simples e comercializados a preço acessível.

São oferecidas sugestões de administração do orçamento familiar, intervenções cirúrgicas que propiciam a conquista de certo padrão de beleza, receitas culinárias que especificam valores nutricionais dos alimentos, indicações para os cuidados cotidianos com a saúde: afirmações que assumem, em geral, um caráter científico. Existem ainda coleções com "dicas" sobre o tratamento de patologias controláveis que atingem parcela significativa da população, como hipertensão, obesidade, diabetes ou depressão. Outras vezes, apresentam-se como publicações elaboradas, um pouco mais caras, produzidas em papel de excelente qualidade, com muitas fotos, gráficos e dados estatísticos.

Esses manuais de autoajuda se dispõem a prover o leitor de ferramentas para viver bem e satisfeito em meio às violências da vida cotidiana. O livro Mulher: o caminho para o bem-estar na vida moderna, de Angela Phillips, lançado no Brasil pela Editora Globo, serve como exemplo.

Apresentada como um guia para o público feminino, com estratégias para o autodesenvolvimento, a obra se propõe a ensinar como analisar as próprias habilidades e a traçar metas e cultivar "ferramentas indispensáveis" para ser mais eficiente e feliz. A autora define como vida saudável: a ausência de doenças, o bem-estar físico e mental. Oferece exercícios, corporais ou "psicológicos", para a mulher que queira tomar posse de um instrumental que lhe permita examinar o próprio passado, erigir um padrão para seus relacionamenntos futuros e ter boa saúde mental e corporal.

Phillips sugere também "estratégias práticas e conselhos pragmáticos" para o bom trânsito no mundo do trabalho.

• Controle e burocracia

Alguns autores obtêm projeção social e sucesso de vendas com essas publicações. A mídia tem tratado de tornar consensual a ideia de que essa literatura e os programas de vida saudável propostos por ela são eficientes. Para o seu bom funcionamento, as sociedades capitalistas burguesas, administradas segundo a lógica do mercado, seguem e exigem padrões burocráticos de eficiência, baseando-se em cálculos, previsibilidade e controle. Arquitetadas com esses padrões de administração, estabelecem em todas as suas estruturas (governo, família, escola, mídia, justiça e outras) programas que disciplinam o corpo e a alma dos indivíduos para que se capacitem para as práticas sociais.

A direção padronizada da vida cotidiana parte do "disciplinamento corporal". Como mostrou Foucault, esse processo tem início, por volta do século XVIII, com a educação do corpo do trabalhador, para que ele permanecesse horas seguidas em frente a uma máquina. Depois, o programa de disciplinamento entra na sala de aula para treinar os alunos nas rígidas normas da vida escolar.

Esse modelo alude a uma espécie de biopoder que - para além da administração de coisas - administra pessoas, se apresenta como capaz de evitar rebeliões ou revoluções, a partir da incorporaação da norma, típica da sociedade disciplinar moderna.

Esse disciplinamento se dá, principalmente, pela imposição, mesmo que sutil, de um tipo de racionalidade que implica ver e pensar o mundo segundo a lógica do mercado. A obediência aos padrões burocráticos marca as práticas de conduta neste mundo. E, sobretudo, viver nessas sociedades exige autocontrole. Os padrões de eficiência também são aplicados na administração da individualidade. Somos levados a incorporar a forma racionalizada de dirigir o mundo e administramos burocraticamente nossa vida interior.

A antropóloga e doutora em saúde coletiva Paula Sibilia, autora de pesquisa sobre o que ela chama de "homem pós-orgânico", de 2002, afirma que sair dessa lógica é trabalhoso: "As estruturas político-sociais aprisionam e submetem o indivíduo a um conjunto de regras e normas, envolvendo um jogo muito complexo de relações de poder capilares, capazes de fixar os corpos e as subjetividades ao aparelho de produção capitalista". Nas sociedades contemporâneas - chamadas pelo filósofo Gilles Deleuze de sociedades de controle - a empresa substitui a fábrica, e os indivíduos são colocados em perpétua rivalidade. Enquanto nas sociedades disciplinares modernas as instituições (família, escola, exército, fábrica) apresentam-se bem delimitadas e estabelecidas, nas sociedades de controle elas estão em permanente crise. Neste contexto, a instituição que sobrevive, com relativo sucesso, é o mercado. O papel social exigido para pertencer a ela é o de consumidor - o que não é tarefa simples.

As empresas, sustentadas pela informática e pela biotecnologia, colocam no mercado produtos tecnologicamente sofisticados, que precisam de consumidores "habilitados". A preparação para o consumo torna-se também um produto, comercializado como ideias, conceitos ou propostas de práticas, em cursos rápidos ou longos que atualizam o sujeito e o capacitam a agir como cidadão-consumidor. Assim, a indústria da cultura coloca à disposição do mercado recursos "necessários" para resolvermos sozinhos problemas físicos e psicológicos, resultantes da nossa transformação em indivíduos consumidores. E o manual de auto-ajuda é um desses produtos. Com ele, a pessoa é levada a buscar uma terapêutica para munir-se de poder pessoal e, assim, criar soluções para seus problemas, transformando sozinha sua vida pessoal e sua experiência social. Isso nos leva a pensar que o esvaziamento da política - tantas vezes mostrada como espaço do roubo e do engano - e a intensificação da publicidade - apresentada como lugar da verdade - incentivam o auto governo e a gerência de si mesmo como exercício de cidadania.

A cultura de valorização da forma física é favorecida pela indústria, pelo mercado e por um conjunto de práticas de massa. O indivíduo exibe seu corpo; "trabalhá-Io" é visto como virtude pública, na qual a beleza é capital de investimento. Entretanto, as práticas virtuosas de construção do corpo saudável são repartidas, de maneira desigual, para grupos, sexos ou idades. O obeso, por exemplo, é estigmatizado.

A cultura de massa do corpo é construída a partir de uma racionalidade técnica de gerenciamento de si, que se caracteriza como um autogoverno ativo, compreendido como virtude pela ética puritana do corpo, engajada numa espécie de pastoral do suor, que confere aos exercícios físicos a chancela de práticas virtuosas vinculadas à ordem, à exatidão e à disciplina e vê o reforço disciplinar como uma intensificação dos controles e uma "re-puritanização" dos comportamentos. Assim, ninguém mais deve ficar sem fazer nada. E como consequência da boa forma física, segundo essa ética, pode-se conquistar prazer e bem-estar psicológico. O investimento sobre o corpo é considerado virtude e o exercício físico, muitas vezes, assume a conotação de prática religiosa.

Em programas educativos desse tipo, as práticas disciplinares e a racionalidade subjacente apoiam-se no trinâmio religião-saúde-mercado. E na complexidade dessas práticas veem-se envolvidas a informatização dos espaços, a vulgarização dos resultados de pesquisas científicas e a divulgação em massa de programas pré- fabricados de felicidade, na composição dos quais se vê, constantemente, serem usados conceitos e teorias da psicologia.

Geralmente, na literatura de autoajuda os conceitos científicos surgem, com uma frequência surrpreendente, vulgarizados como justificativas teóricas para a proposta defendida. O desenvolvimento científico-tecnológico coloca à disposição dos programas de construção de sujeitos, modelos de governo de si que prometem livrar o indivíduo de sua finitude natural.

Os conceitos de homem, natureza, vida e morte estão sofrendo mutações causadas, por exemplo, pela sacralização da tecnologia, que tem reduzido limitações temporais e espaciais da materialidade orgânica. A virtualidade nos leva a ignorar as restrições do corpo humano e, nesse contexto, a materialidade é vista como impura. Mas o caráter consumista da sociedade de controle oferece a possibilidade de purificação, com hábitos que garantem o cultivo da "boa forma física".

Os métodos disciplinares ganharam em velocidade e alcance. Atualmente são difundidas até ideias de uma genética comportamental, voltada para a descoberta de relações entre genes e traços da personalidade, permitindo ao indivíduo a possibilidade de fazer upgrades sistemáticos de sua alma.

As inovações da biotecnologia, intensamente divulgadas pela mídia, como cirurgias plásticas, próteses de silicone, lipoaspiração, botox, unhas e dentes de porcelana, lentes de contato, implante de cabelo, bronzeamento artificial e de toda sorte de cosmética, incentivam os indivíduos a sonhar com a recriação de si. Toda essa oferta nos impele à prática de administração de nossas idiossincrasias, para torná-Ias potencialidades que nos transformam em gestores de nós mesmos.

• Tabu do açúcar

Nessa fantasia da autoprodução, o indivíduo passa a julgar-se com base em critérios de força, rigidez, juventude, longevidade, saúde e beleza - que se tornam valores, julgam e orientam a ação individual.

A alimentação saudável, por exemplo, é um aspecto interessante das práticas poIítico-morais contemporâneas. A preocupação com a sexualidade perdeu para a comida o lugar de sintoma ligado á ansiedade e outras manifestações patológicas: o tabu e as interdições deslocaram-se para a gordura e para o açúcar. Hoje o bode expiatório é o gordo - e não o libertino.

A saúde, a perfomance corporal, a longevidade, o controle das doenças genéticas, as práticas de higiene, a alimentação saudável, o bom desempenho físico e as formas de ocupação do tempo passam a ser os critérios usados para agrupar as pessoas. A sociabilidade, hoje, é vista como biossociabilidade, e o corpo funciona como lugar de autoidentidade.

Dessa forma, somos levados a nos tornar capazes de controlar, vigiar e governar nosso corpo e, numa peritagem constante de si, avaliar-nos moralmente e construirmos nossa identidade com base em uma prática ascética, ou no exercício moral, uma espécie de "bioascese", cuja característica principal é a reflexividade.

Assim, os problemas de alimentação tomam o lugar da histeria (de outros tempos) como patologia preocupante. A escolha da dieta como estilo de vida une as preocupações com a aparência física, a sexualidade e a autoidentidade. O estilo de vida contemporâneo exige uma autodisciplina constante; o governo de si obriga o indivíduo a manter o corpo sempre sob controle: sempre jovem e potente; sempre fit in (termo em inglês para ajustado, adaptado).

Nos programas de autoajuda a felicidade costuma ser caracterizaada por uma aversão à dependência, própria de sociedades nas quais o espaço público, da política, está esvaziado. Em nossa sociedade, o indivíduo deve ser independente, encarregar-se de manter o corpo e a saúde perfeitos, sob pena de ser considerado um fracasso. Neste contexto, o sedentário, o gordo e o velho, a mulher de cabelos brancos demonstram sua inadaptação e são figuras estigmatizadas.

O enorme esforço de vigilância exigido para o autogoverno do corpo e da alma adquire caráter moral, pois não se trata apenas de cuidar da saúde física para não adoecer, da saúde mental para não enlouquecer: as práticas da vigilância de si são exercícios de crescimento espiritual, que entram no domínio dos "bons costumes" e no âmbito da boa conduta moral. Quem consegue manter-se "em forma" é visto como um exemplo a ser seguido.

Deste modo, a crescente exigência de autocontrole leva à busca constante pela medida certa, segundo os padrões de eficiência, cálculo e previsibilidade - e abre espaço para um enome mercado de literatura de autoajuda justamente porque essa literatura veicula receitas de práticas individuais controláveis e eficientes para a produção e o controle da subjetividade, com base nas ideias de que podemos usar nosso poder interior para solucionar qualquer um de nossos problemas. A literatura de autoajuda propõe-se a aumentar nossa capacidade de auto-observação e nos ajudar a escolher a melhor forma de sermos nós mesmos. O problema é que o gênero esconde o fato de que grande parte das angústias individuais tenha origem social.

Para conhecer mais

O homem pós-orgânico corpo, subjetividade e tecnologias digitais. Paula Sibilia. Relume Dumará, 2002.

Literatura de Auto-Ajuda e Individualismo. F. Rüdiger, Ed. Universidade UFRGS, 2002.
Políticas do corpo. Denise Santana (org.) Estação Liberdade, 2005.


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terça-feira, 17 de janeiro de 2017

P2 ( PROPAGANDA DUE )




A Propaganda Due, ou P2, não é propriamente um rito maçônico, mas uma Loja. Trata-se, porém, de uma Loja maçônica envolvida em crime e mistério. O mais inusitado com relação à Propaganda Due é que, durante o período de atividade da Loja, isto é, entre as décadas de 1970 e 1990, é que ela era formada, entre outros, por membros da cúpula da Igreja Católica.
A existência da P2 veio a público com o escândalo do Banco Ambrosiano, uma das maiores da cidade de Milão que faliu em 1982. O Banco do Vaticano era o principal acionista do Banco Ambrosiano, o qual fazia operações ilegais manipuladas por Roberto Calvi, o banqueiro encarregado das finanças do Vaticano, e outros membros da P2. O escândalo determinou o fim da Loja e revelou um dos mais ousados planos para se controlar um país da história contemporânea.
A Loja foi fundada em 1877, sob o Grande Oriente da Itália. Até a década de 1960, a P2 tinha uma representação insignificante, com apenas 14 membros permanentes. No entanto, quando Licio Gelli passou ao comando da Loja, no final dos anos 1960, ela rapidamente passou a ter mais de mil associados - todos pertencentes à elite italiana. Gelli se associou a Roberto Calvi, apelidado de "O Banqueiro de Deus", pois geria as finanças do Vaticano.
Gelli tencionava utilizar a Loja para consolidar seu projeto para a Itália. Entre 1965 e 1981, a P2 buscou dominar o processo político italiano colocando membros da Loja em posições-chave no Parlamento, no Poder Judiciário, nas instituições financeiras no exército e na imprensa. Dessa forma, os principais líderes dos setores mais importantes da sociedade italiana estariam agindo de acordo com a orientação da Loja.
Nesse período, a P2 também se envolveu na Operação Gládio, a fundação de organizações paramilitares clandestinas formadas pelos serviços de informação italianos e pela Otan ( Tratado do Atlântico Norte ), durante a Guerra Fria. Com a projeção política que o Partido Comunista tinha na Itália depois da Segunda Guerra Mundial, temia-se que este país se voltasse ao bloco soviético. Por isso, os membros da P2 se anteciparam, buscando formar grupos paramilitares que atuassem no exterior combatendo o comunismo. A Operação Gládio promovia a chamada Estratégia de Tensão, visando a criar insegurança em uma determinada população de modo a provocar uma opinião pública favorável à instauração de um Estado policial, onde os direitos políticos e a liberdade de expressão são suprimidos.
Nesse processo, a P2 acabou estendendo sua atividade para Uruguai, Brasil e Argentina. Neste último país, teve proeminência na Guerra Suja, quando os ditadores militares promoveram sequestros e assassinatos de milhares de civis inocentes. Raul Alberto Lastiri, que foi presidente da Argentina entre julho e outubro de 1973, e Emílio Massera, membro da Junta Militar liderada por Jorge Rafael Videla ( o presidente que promoveu o maior número de assassinatos entre a população civil ) eram membros da P2.
Em março de 1981, a polícia encontrou na casa de Gelli uma lista de membros da P2, a qual continha 900 nomes. Entre os listados estavam quatro ministros e 44 deputados, além de oficiais do exército italiano, muitos dos quais ligados ao SIOS, o serviço secreto daquele país. Entre os membros mais proeminentes da P2 estavam o príncipe de Nápoles, Vitor Emanuel, e o futuro primeiro-ministro italiano, Sílvio Berlusconi.
Juntamente com a lista de nomes, foi encontrado um documento que resumia os objetivo de Gelli à frente da Loja: criar uma elite política na Itália que levasse o país rumo a uma nova forma de democracia, mais autoritária, a qual fizesse frente à ameaça comunista. Um dos mecanismos propostos no documento para conquistar essa meta era o fechamento dos sindicatos.
Na investigação subseqüente, realizada por uma Comissão Parlamentar, a P2 foi considerada "uma organização secreta criminosa" e dissolvida. Apesar disso, não foram encontradas provas específicas sobre os supostos crimes cometidos. Entre os delitos relacionados à Loja está o assassinato do primeiro-ministro italiano Aldo Moro. Moro foi sequestrado e morto pela organização terrorista de esquerda Brigadas Vermelhas, depois que o serviço secreto italiano - do qual muitos líderes eram filiados à P2 - se recusou a fazer um acordo com os raptores. Como nos outros casos, não há provas que incriminem diretamente os membros da P2. Suspeita-se, porém, que a operação tenha feito parte da Estratégia de Tensão concebida para avançar os interesses dessa sinistra Loja italiana.
Outro dos crimes atribuídos à P2, o qual não foi igualmente provado, é o suposto assassinato do Papa João Paulo I. Poucos dias depois de ter sido eleito, João Paulo I teria ordenado uma investigação rigorosa no Banco do Vaticano, que estaria sendo usado pela Máfia, através de seus contatos na P2 para lavagem de dinheiro.

( Publicado em ALMANAQUE DA MAÇONARIA, ed. 2, Editora On Line - pg 48 e 49 )

OS MISTÉRIOS DO VATICANO, por Mauro Santayana
Sempre que morre um poderoso, a tumba da História é aberta e são exumados os segredos sobre o seu tempo. Dependendo de quem se eleger papa, e da Cúria que nomear, poderão surgir documentos e testemunhos sobre a misteriosa morte de Albino Luciani, o brevíssimo antecessor de Karol Wojtyla. Os rumores são muitos e livros foram escritos (como In God’s name- na investigation into the murder of John Paul I. Bantam Books, Nova Iorque, 1985), envolvendo proeminentes figuras do Vaticano, a Loja Maçônica P-2, a CIA e o Banco Ambrosiano, na morte súbita de João Paulo I, cujo pontificado durou apenas um mês. O papa, que assustou os conservadores, ao afirmar que Deus poderia ser visto também como a mãe dos homens, ao assegurar que o Ser Supremo está isento dessa classificação anatômica e social, tinha preocupações menos transcendentais. Ele deixara claro que queria ir muito além do que pretendera João XXIII, com o Concílio Vaticano II. Trazia a decisão de recuperar a Igreja dos Primeiros Cristãos e pretendia abandonar as pompas suntuosas do Vaticano. No pontificado que pretendia exercer, não haveria lugar para “operadores financeiros” encarregados de especular no mercado os recursos da Santa Sé. E pretendia excomungar da Igreja prelados e sacerdotes que participavam do grupo de Gelli, representante dos setores fascistas da Máfia, que, em apenas com um ano de iniciação, ocupou o grão-mestrado da loja maçônica P-2 (Propaganda 2), da qual eram membros altas figuras da Igreja (como o bispo Marcinkus, nascido em Illinois e educado em Chicago), homens da Democracia Cristã, banqueiros, dirigentes da Máfia – e Sílvio Berlusconi. A “loja” era financiada pelos serviços secretos americanos, conforme declararam ao canal de TV TG1, em Roma, dois agentes da CIA, Richard Brenneke e Razin. A P-2 esteve envolvida nos atos de terrorismo neofascista, como o atentado ao trem Italicus, em 1974, a explosão da estação ferroviária de Bolonha, em 1980, ao delito Mattarella, ao caso Aldo Moro, assassinado pelas Brigadas Vermelhas e ao desvio de milhões do Banco Ambrosiano. Licio Gelli, ao retornar de São Paulo, em entrevista à TV Italiana, em 92 (e o almanaquista assistiu ao programa), afirmou que o dinheiro roubado dos acionistas do Banco Ambrosiano fora desviado para o Solidarinost, pelo bispo Marcinkus. Junto com o dinheiro da CIA, da AFL-CIO e do National Endowment for Democracy, serviu para derrubar o governo polonês. Marcinkus foi convocado para depor na Justiça italiana, recusou-se a isso e ficou impedido de sair dos muros do Vaticano. Se saísse, seria preso. Entre outras coisas, era acusado de lavar o dinheiro da Máfia, por intermédio daquele banco, dirigido por Roberto Calvi. No momento em que Calvi começou a incomodar, foi competentemente “suicidado” sob a Blackfriars Bridge (significativamente, a Ponte dos Frades Negros), em Londres. Segundo circula nos meios bem informados de Roma, Marcinkus, na sucessão de João XXIII, teria preferido o conservador arcebispo de Gênova, o Cardeal Siri. Com a morte misteriosa de João Paulo I, o conclave ficou entre os cardeais Siri e Benelli, de Veneza. Segundo algumas versões, diante do quase empate (ou do empate, não se sabe bem) dos dois candidatos, o cardeal Koenig, orientado pelo americano Marcinkus, sugeriu o nome de Karol Wojtyla, um quase desconhecido, como “tertius”. Outra versão é a de que, eleito, Siri, ao ouvir as palavras do camerlengo (Aceita a tua eleição, realizada canonicamente, a Sumo Pontífice?), recusou o cargo. Talvez soubesse mais do que os outros das circunstâncias da morte de Luciani. Antes dele, outros eleitos já haviam dispensado a coroa papal, como foi o caso de Adriano, que recusou a suceder a Leão IV, em 855, e morto este, a suceder a Benedito III (em 858), só aceitando o cargo em 867, para exercê-lo durante cinco anos.
Muitos crimes foram cometidos em nome de Deus, como a perseguição aos judeus, o martírio de Giordano Bruno, o apodrecimento do papado sob Alexandre VI, Júlio II e Leão X, que provocaram o aparecimento de Lutero. Desses crimes, periodicamente a Igreja manifesta o seu arrependimento, como fez o próprio João Paulo, ao pedir desculpas aos judeus pela sua omissão durante o holocausto. Mas a Igreja sempre tem sobrevivido, sustentada pela fé dos povos. Não é o Vaticano que lhe dá força e vida: é a palavra do rapaz que nasceu em uma gruta de Belém, para morrer na cruz, entre “dois outros”, conforme o belo Evangelho de João.

Em 1907, um engenheiro inglês, Murley Cotto, sob o pretexto de caçar nas rochas ferrosas de Itabira, esteve na região e entrou em contato com o geólogo Gonzaga de Campos, que, enviado pelo governo federal, fazia pesquisas na área. Ao confirmar a importância das jazidas, comprou grande extensão de terras, viajou para Londres e, ali, constituiu o Brazilian Hematyte Syndicate. Vale a pena ler o prospecto da empresa, endereçado aos prováveis acionistas: “Devemos assegurar o nosso futuro, adquirindo em países amigos, como o Brasil, reservas que se valorizarão com o tempo. Dentro de algumas dezenas de anos, as jazidas do Rio Doce poderão valer milhões de vezes o preço pelo qual poderíamos adquiri-las hoje, e o Império Britânico contará com a maior reserva de ferro do mundo. Se cada banqueiro, cada industrial, cada inglês despender, sem esperança de remuneração imediata, algumas libras para adquirir ações do sindicato que acabamos de fundar, ficará assegurado o futuro da siderurgia britânica”.
O americano Percival Farquhar, um milionário da Pensilvânia, havia decidido vir para o Brasil e tomar conta do país, antes de dominar a América do Sul. Seu plano inicial era retomar os projetos ferroviários de Mauá. Para isso, precisava de aço, e, portanto, do minério de Minas. Farquhar comprou o controle do Brazilian Hematyte com dinheiro americano e criou a Itabira Iron. Achou que seria fácil apossar-se de todo o Quadrilátero Ferrífero, corrompendo autoridades, como conseguira a concessão da Madeira-Mamoré e da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande do Sul. Mas esbarrou nos mineiros, já gatos escaldados com os portugueses e o saqueio do ouro. Como, naquele tempo, os estados tivessem autonomia, o presidente de Minas, Júlio Bueno Brandão, fez algumas e necessárias exigências, para a proteção dos interesses do estado. Queria que o minério fosse transformado em ferro e aço em Minas. Como Farquhar a isso não se comprometesse, impôs um tributo de 300 réis por tonelada de minério que saísse das divisas mineiras. Farquhar, que nada queria pagar, não desanimou: mediante advogados conhecidos e bem pagos, conseguiu assinar contrato de exploração das jazidas, em 1919, com o presidente da República, Epitácio Pessoa, que ignorou os direitos autonômicos de Minas. Os mineiros reagiram, com Arthur Bernardes, então presidente do estado e seu secretário Clodomiro de Oliveira (tio do José Aparecido). Como dizem os cubano “a quienes no le gustan el caldo, dos tazas”: Bernardes decidiu impor a taxa de 3 mil réis por tonelada a ser exportada – dez vezes mais do que a tarifa exigida por Bueno Brandão – se o minério não fosse usinado em Minas.
Farquhar não desistia, continuava alugando lobistas de altíssimo nível. No governo de Antonio Carlos Ribeiro de Andrada, em Minas, quase leva a melhor. Mas logo veio a Revolução de 30 e, em 34, o Código de Minas, que transferia ao poder público o direito ao subsolo. O americano teve que começar tudo de novo. Vargas, que sonhava com a produção de aço, condicionava a exploração do minério à instalação de uma grande siderurgia. Farquhar não tinha fôlego para tanto. Ao estourar a Segunda Guerra Mundial, assinaram-se os tratados de Washington, e Getúlio conseguiu acabar de vez com o litígio: a Inglaterra, em troca do suprimento do minério brasileiro, indenizou os portadores de ações da empresa e renunciou aos controvertidos direitos de Farquhar, também indenizado. Assim, surgiram, ao mesmo tempo, a Vale e a Usina de Volta Redonda.
Em 1996, Fernando Henrique decidiu privatizar a Vale. Por iniciativa de Itamar Franco, várias personalidades brasileiras se reuniram em Juiz de Fora em 11 de novembro do mesmo ano e divulgaram um manifesto contra a venda da empresa. Entre outras coisas, dizia o documento: “A Vale do Rio Doce é conquista política e técnica dos brasileiros. Seu patrimônio maior são suas jazidas que não podem, dentro dos recursos técnicos de medição de hoje, ser avaliadas com exatidão, a par da inteligência operacional, construída pelos seus engenheiros e administradores. “A Vale do Rio Doce conquistou a posição que tem no mundo sem quaisquer privilégios, como os do monopólio, de subsídios ou de isenções fiscais. “A empresa tem sido também, ao longo de sua existência, e pelo fato de a controlar o Estado, importante agência do desenvolvimento econômico, social e cultural nas regiões em que atua. Além dos dividendos que distribui a seus acionistas, e dos reinvestimentos que realiza, a Vale emprega grande parte de seus lucros na promoção da saúde, da educação, da cultura e das atividades produtivas em vastas áreas do país. “Segundo a avaliação disponível, pretendem transferir o controle acionário da empresa por menos de US$ 10 bilhões. Isso é muito menos do que valem as suas instalações portuárias e suas duas grandes ferrovias. “Não procede o argumento de que a privatização da Vale é necessária para resolver o problema do Tesouro. O déficit público tem registrado somas mensais equivalentes à prevista na alienação da empresa. Não temos uma Vale do Rio Doce para ser privatizada todos os meses”. A empresa foi privatizada por US$ 3,2 bilhões, em grande parte constituídos de moedas podres, e com empréstimo do BNDES.
Nove anos depois, contando apenas com o reinvestimento de seus lucros, a empresa já vale 15 vezes mais do que custou (na avaliação “deles”) e deu de resultados, no último ano, duas vezes mais do que o preço pelo que foi vendida, isso sem contar com os dividendos que distribuiu em todo esse tempo. Esta semana, Tiradentes, repartidas suas cinzas pelos quatro cantos da Capitania (incorporadas ao férreo solo), se pudesse, perguntaria por que assim venderam a República com a qual sonhou.
Vozes da tumba
Não é de pouca importância a um príncipe a escolha de seus ministros, os quais são bons ou não segundo a prudência do príncipe. E o primeiro cuidado que deve ter um Senhor é o de observar os homens que o cercam. Quando eles são muitos e a ele fiéis, sempre se pode considerá-lo sábio, porque soube conhece-los bem e mantê-los fiéis; mas quando ocorre de outro modo, não se pode fazer bom juízo do príncipe, porque o primeiro erro que faz, ele o faz nessa eleição de ministros.
Niccolo Machiavello, Il Príncipe, capítulo 22.




Itália recupera fortuna de Calvi
04/06/08

ROMA - Parte de um enorme tesouro que um homem conhecido como ''banqueiro de Deus'', Roberto Calvi, estava desesperadamente tentando encontrar quando morreu, foi achada em bancos nas Bahamas.
Somando um total de US$ 70 milhões, o dinheiro estava perdido desde 1982, quando Calvi foi encontrado enforcado debaixo de uma ponte em Londres. Seu banco, Ambrosiano, tinha quebrado meses antes, devendo milhões de dólares ao Vaticano, à máfia siciliana e a outros.
Considerada suicídio, a morte de Calvi está sendo agora considerada assassinato e quatro pessoas devem ir a julgamento na Itália.
Os novos rumos da investigação anglo-italiana sobre o caso foram noticiados pelo La Repubblica, de Roma, semana passada. Segundo os promotores do lado italiano da investigação, o dinheiro foi descoberto em várias contas nas Bahamas, e acredita-se que Calvin estava desesperadamente tentando reavê-lo quando morreu.
Quando o cadáver foi encontrado, os bolsos de seu casaco estavam cheios de tijolos, mas não havia poeira de tijolo em suas mãos. Sua morte ocorreu logo após o banco, que mantinha estreitos laços com a máfia, o Vaticano e a confraria maçônica italiana, com vários políticos influentes entre seus membros, quebrar com dívidas de US$ 1,480 bilhão.
Apesar das reivindicações da família na época, o caso só foi reaberto no ano passado, depois que uma equipe de cientistas forenses, encarregada por um tribunal de Roma, concluiu que Calvi foi assassinado.
Os promotores acreditam que o dinheiro localizado no paraíso fiscal faz parte de uma grande operação que o banqueiro teria organizado junto ao cartel de Medellín.
Segundo os juristas, milhões de dólares saíram da Colômbia e passaram por vários bancos até aparecer no Ambrosiano das Bahamas.
Mas o novo rumo da investigação só foi possível graças a uma investigação feita há alguns anos pelo FBI.
Ao seguir o rastro do dinheiro do cartel de Medellin, os investigadores encontraram os US$ 70 milhões que tinham sido transferidos ao Banco Ambrosiano. Isto fez com que se chegasse à conclusão de que Calvi criou uma rede na América do Sul, com políticos, banqueiros e traficantes, que pretendiam lavar o dinheiro do tráfico.
Fontes próximas afirmam que Calvi sabia tudo sobre as intrincadas manobras financeiras dos grandes bancos da Itália, inclusive sobre o banco privado do Vaticano.
Uma testemunha disse recentemente que ''durante a época em que foi detido - de maio a julho de 1981 - e logo depois que foi libertado, muitos estavam trabalhando ativamente para tirar o banqueiro da Itália, porque era um perigo para todos''. Ele sabia demais.

Volta-se a falar em Marcinkus

O falecido monsenhor Paul Casimir Marcinkus é acusado na Itália de mais um crime pela amante do boss de um bando romano de inspiração mafiosa, Enrico De Pedis, assassinado há 18 anos. A mulher, Sabrina Minardi, testemunha de um processo em andamento, presta esclarecimentos sobre o seqüestro e o assassinato de Emanuela Orlandi, filha de um funcionário do Vaticano. O fato remonta aos anos 80, e Sabrina diz: “Emanuela foi seqüestrada por ordem de Marcinkus porque seu pai vira algo que não podia ver. Foi assassinada e seu corpo foi jogado em uma betoneira”.

O Vaticano reage, denuncia infâmias. Pode ser que a imaginação de Sabrina, consumidora contumaz de cocaína, galope por pradarias insondáveis, mas não são de ficção as ações de Marcinkus, o cidadão americano mais poderoso na história da Igreja Católica. Administrou de 1971 a 1989 as finanças vaticanas, na qualidade de presidente do IOR (Instituto para as Obras da Religião), o banco da chamada Santa Sé.
Debaixo de sua batuta, os recursos do Estado pontifício fermentaram mil vezes. Marcinkus, que esteve no Brasil quando da primeira visita de João Paulo II, ficou profundamente envolvido em mais de um escândalo político e financeiro, inclusive na quebra clamorosa do Banco Ambrosiano de Roberto Calvi, que morreu enforcado debaixo de uma ponte sobre o Tâmisa, vítima de assassínio disfarçado em suicídio.
Parece cinema, mas não é. Como o próprio Marcinkus, jogador de tênis e golfe, cercado por um corpo de baile de secretárias esbeltas e loiras. Papa Wojtyla protegeu seu querido “banqueiro de Deus” por longo tempo, mesmo depois da tentativa da Justiça italiana de incriminá-lo quando do craque do Ambrosiano, espantoso escândalo que mescla Máfia e Maçonaria.
Abandonou-o ao seu destino com as águas mais calmas, em 1989, e o remeteu para uma remota cidadezinha perdida no deserto do Arizona, Sun Valley, que ao certo não precisava de um arcebispo. Ali Marcinkus passou para melhor vida, há dois anos, aos 84.
Um livro de recente publicação na Itália, intitulado La Questua (a colheita dos óbulos), de autoria de um brilhante jornalista do diário La Repubblica, Curzio Maltese, ao cabo de uma pesquisa capilar, conta quanto os italianos pagam, via imposto, para sustentar um papa que age como rei, declara-se vigário do Altíssimo, e interfere sinistramente na vida do país. Esclarece também a importância do IOR, hoje mais valioso para os poderosos globais do que bancos suíços e paraísos fiscais.
É possível que a história de Sabrina careça de provas. Ao contrário de outras. Por exemplo, esta: João Paulo I, na noite em que se recolheu ao quarto para o sono que seria eterno, depositou sobre o criado-mudo alguns apontamentos relativos às atividades de Marcinkus. Tomou uma chávena de chá e amanheceu morto. Mais uma: Enrico De Pedis foi sepultado em área de propriedade do Vaticano com a autorização do cardeal-vigário de Roma.
Carta Capital Nº502 - 2 de Jullho 2008, pag.22


Italy - An endless cycle of terror
Italy's fascist-infested democracy is now coming under real strain. Terrorists calling themselves "The Red Brigades" struck again at the end of March in Bologna, killing Marco Biagi, a university professor and govern-ment consultant on labour and employment policy.

These terrorists are once more enveloped in the mystery of their true political function and affiliation. In the past their activities have been used by American-backed right-wing and fascist forces as levers in the strategy of tension that came about within the framework of the Anglo-American Stay Behind Gladio networks dating back to 1949.

Now the old questions are being asked again. Whose interests are these terrorists serving? Who is likely to benefit from their actions at a time of increased tension in the face of renewed confrontation between a government lacking credibility and the trade unions?
The attempts to find some answers have reopened speculation about the so-called "second generation Red Brigades", which came into existence in 1974-75. According to General Gianadelio Maletti, the director of Italian military counter intelligence in the early 1970s, later found guilty of collusion in the protection of fascist terrorists, "second generation Red Brigades" were probably recruited by the Italian Secret Service and other "parallel agencies" acting under the supervision of the CIA in order to infiltrate the original movement of the Red Brigades, known as the "nucleo storico".
In his testimony given last year before the Commissione Stragi (Commission on terrorist massacres), General Maletti, who in order to escape justice took refuge in South Africa under apartheid, said that the creation of "second generation Red Brigades" was discussed at the highest level of the Italian government. He did not deny that some of their members were trained at Campo Maraggiu, in Sardinia. This was the secret training ground for the Gladio forces, which were linked to a network of fascist organisations. The favourite of the CIA, and undoubtedly of Henry Kissinger himself, was Ordine Nuovo, led by Pino Rauti, the avowed admirer of Hitler and Himmler. Only last year Rauti made an electoral deal with Silvio Berlusconi's Forza Italia. At the very top of the secret plans however was the fascist Licio Gelli, head of the notorious P2 Masonic Lodge.
Gelli, known to the CIA and friendly with the former US President Ronald Reagan, recruited about 1,200 members, including Maletti and other heads of the secret services and the military. P2 was later described by an investigative commission as a "government within the government". It was a subversive organisation, a military coup in waiting, with men ready to take control of key structures throughout the country. An attempted coup did in fact take place during the night of 7-8 December 1970, when the Home Office in Rome was briefly taken over. Known as the "Borghese coup", it was called off at the last minute apparently because Gelli did not get the green light from the United States.
On the list of P2 members found in Gelli's villa in Tuscany was the name of Berlusconi. Among the many mysteries in the tycoon's early career concerning the source of the funds that enabled him to buy estates in Milan and later launch his television channels with licences given to him by the corrupt Christian Democratic-Socialist government, the Gelli link highlights the Gladio-P2-Berlusconi-CIA jigsaw.
Berlusconi is now flanked by deputy Prime Minister Gianfranco Fini, the former secretary of the fascist MSI (Movimento Sociale Italiano), and by Umberto Bossi of the racist Northern League. The rise of what has been described as the most dangerous political triad in Europe appears to be the successful fruition of a long sought objective. "The CIA wanted to assist nationalism with the extreme-right contribution", declared Maletti to the Commission.
Given the efforts of both the United States and Britain in setting up the Gladio network in Italy in 1949, which relied on fascists as the most trusted soldiers to keep the Communists at bay, it would seem that Prime Minister Tony Blair's steadfast support for and efforts to give legitimacy to Berlusconi's government, even when it appears anomalous and disreputable in the eyes of the world, is just a rerun of old alliances outside parliamentary democracy going back more than 50 years.
As for the Red Brigades, the key members of the "nucleo storico" were captured and most of them have since publicly recognised the futility and anachronism of any attempt to win over by force an entire population to the idea of establishing a communist state against the intentions of established left-wing parties. One wonders, therefore, what lies behind these new recruits who commit a terrorist act, such as the killing of Biagi, that so clearly strengthens the Berlusconi coalition and more specifically prompts the entire military to spring to its defence.
The killing has come at a time when the government is facing the reemerging opposition led by a trade union movement still capable of mobilising up to three million people on a national demonstration and bringing the country to a standstill in defence of workers' rights. The unions have flatly rejected Berlusconi's attempts to depict them as the breeding ground for terrorism. Their aim is to protect Article 18 of the Workers' Statute, which requires the reinstatement of anyone who is sacked without good reason. Biagi was one of the architects of a change in the Statute that would have made hiring and firing easier. He knew he was in danger. He had complained to the authorities about their decision to take away his escort and leave him unprotected.
In order to divert attention from this crucial detail, soon after the killing government officials claimed to know that the terrorists had used the same "Red Brigade weapon" that two years earlier had killed Massimo D'Antona, another government consultant on employment legislation, who had worked under the previous government. Later, however, it transpired that this detail could not be verified. In D'Antona's case the killers had picked up all the bullets in order to cut all links to the weapon that had fired them.
There will be arrests of course. But those really responsible for the Biagi killing will remain shrouded in mystery. This is not just because some of the most recent terrorist attacks, such as the bomb at Il Manifesto, have turned out to be the work of fascists attached to Third Position, but also because the Bologna killing bears the hallmarks of a very professional operation. "If you look at the spot where it took place you begin to realise that it was carried out with military precision", a source told Searchlight. "Via Valdonica, in the heart of the ex Jewish ghetto of Bologna, is under the constant gaze of dozens of people, with narrow points of entry and exit. This is definitely not the place where amateurs can strike with enough confidence to get away virtually unseen."
The return of terrorism is bound to reopen the questions about the strategy of tension and the "years of lead", one of the darkest chapters in Italian history, and increase the sense of menace to the country's fragile democracy. After 20 years of fascism followed by utter subservience to the United States, which for over 40 years propped up the Christian Democrats' corrupt string of governments infected by the Mafia, financial malpractices and nepotism, many Italians fear for the future of their shaky institutions, especially the judiciary, which has come under the attack of the present government.
The current political situation bears similarities with 1922, when Mussolini was invited to form a government backed by the country's industrial class and by popular consensus achieved through nationalistic fervour and a show of strength. Berlusconi is the industrial class and simultaneously the owner of the key instrument of consensus-making apparatuses, his television channels and huge media empire. Last year a large numbers of Italians voted not so much for parties in the moral ethical tradition but for the embodiment of the aggressive values they had heard advertised: plutocracy, fascism and racism.
There are also similarities with 1963 when for the first time since the Second World War the CIA-backed Christian Democratic Party appeared shaken by the first centre-left-government of Aldo Moro and by trade union militancy. The Stay Behind structure immediately stirred. The attempted coup d'état by General Giovanni de Lorenzo in 1964 was a flop, but it succeeded in mobilising the fascist and neo-fascists forces and thus ignited the fuse of the strategy of tension. Terrorists began to strike. How many members of the Red Brigades were in fact fascists acting as agents provocateurs to weaken the left and strengthen the military we shall probably never know.
Investigations in over 300 killings during the "anni di piombo" have all too often led to the capture and imprisonment of the foot soldiers carrying out the attacks. At the point their commanders would have been unmasked, documents have disappeared, tapes have been erased and witnesses have been killed in an endless and so far successful sidetracking operation. Even the assassination of the Christian Democrat leader Aldo Moro in 1978 remains a mystery. Only last month Michele Landi, a computer expert who had been working on the investigation into the D'Antona killing, was found dead. "I do not think it was suicide," said a magistrate who knew him well.
When D'Antona was killed members of Digos, the Italian anti-terrorist squad, and some military intelligence sources indicated to Searchlight that those responsible were probably to be found among the fascists. The last four years have seen many bombings, arsons and assaults all claimed by what appear to be non-existent "left groups" who when investigated turn out to consist of followers, if not members, of Roberto Fiore's Forza Nuova. The assassination of Biagi is likely to turn out to be part of a recreated Gladio-style strategy, now adapted to prop up the most dangerous political triad in Europe.
Author: Alfio Bernabei   |   Date: May 2002


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