sábado, 16 de julho de 2016

No rastro do dinheiro sujo ( 2005 )

A percepção de que a corrupção está crescendo não é exclusividade brasileira. Com as novas tecnologias de comunicação, multiplicaram-se as ferramentas para transferir, ocultar e disfarçar a fonte e o destino do dinheiro sujo, mundo afora. A avaliação é de Neal Gunnarson, procurador da Divisão de Crimes Financeiros de Utah, nos Estados Unidos. Um dos maiores especialistas no combate à lavagem de dinheiro, Gunnarson desembarcou no Brasil ontem à tarde para participar do seminário Lavagem de dinheiro: Últimas tendências em apreensão, acusação e prevenção, promovido pelo Consulado Americano e pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, hoje, no Auditório do MP do Rio. Para quem se assusta com as cifras movimentadas pelos mensalões tupiniquins, custa nada lembrar que, pelas estimativas do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, circulam pelo planeta anualmente US$ 500 bilhões em dinheiro sujo. Recursos cada vez mais difíceis de rastrear.

– É preciso lembrar que não existe dinheiro sem dono – aponta, usando o português aprendido no curto período em que morou no país, para onde volta para estreitar o intercâmbio de informações na luta contra os crimes de colarinho branco. – Eu amo o Brasil. É uma honra partilhar informação que pode ajudar tanto os americanos quanto os brasileiros.

Seguem os principais pontos da entrevista ao Jornal do Brasil.

Corrupção, terror e narcotráfico são geralmente associados à lavagem de dinheiro. Há conexão entre estas atividades?

– Todas se relacionam por meio da lavagem de dinheiro. É preciso obter dinheiro para financiar as ferramentas do terror, como armas e treinamento. Para um empreendimento criminoso ser bem-sucedido num país, muitas vezes é necessário subornar funcionários públicos, policiais. Dinheiro e imóveis são o coração dos negócios ilegais. Os esquemas de lavagem permitem que as organizações criminosas se institucionalizem, cresçam, infiltrem-se e minem os empreendimentos legítimos e o governo. Facilitam o tráfico de drogas, a extorsão, fraudes, jogo, corrupção e outras atividades do crime organizado.

Nos últimos anos, diversos esquemas de lavagem de dinheiro foram revelados no Brasil. Em muitos, havia políticos e integrantes do Judiciário envolvidos. A corrupção cresceu ou está apenas mais visível?

– Pelas minhas informações, a corrupção cresceu. À medida que o mundo ficou menor, graças à comunicação em tempo real, aumentou a capacidade de qualquer indivíduo controlar e usar estas mesmas ferramentas eletrônicas para transferir, esconder e disfarçar a fonte e o destino do dinheiro sujo.

Na última década, os bancos adotaram diversas práticas de auto-regulação, como a política do “Conheça Seu Cliente”, visando proteger-se de danos à própria imagem. Qual a contribuição destas medidas para o combate à lavagem de dinheiro?

– A abordagem do “Conheça Seu Cliente” é inestimável. Nos EUA, as regras incluem a exigência de relatórios de atividades suspeitas (SAR, pela sigla em inglês), que obriga todo banco, cassino, corretor ou financeira a informar qualquer atividade fora do comum ou que não aparente objetivo legítimo. Estas informações muitas vezes são a chave para se abrir uma investigação.

– Falta cooperação mundial?

– Entre EUA e Brasil, temos o Mutual Legal Assistance Treaty (MLAT, Tratado de Auxílio Mútuo Jurídico), que é desenhado para auxiliar a ação penal num amplo leque de crimes modernos, incluindo aqueles envolvendo terrorismo, tráfico de drogas, lavagem de dinheiro e outros de colarinho branco. Mas, embora os esforços para combater a lavagem tenham crescido nos últimos anos, a escala do problema excede em muito a capacidade das autoridades federais.

– O que pode ser feito no curto prazo?

– Sugiro mais cooperação e comunicação direta entre os estados de cada nação. Em junho de 2004, a National Association of Attorney Generals (órgão que representa os procuradores americanos) expressou formalmente seu desejo de trabalhar diretamente com o Ministério Público do Brasil no intercâmbio de informações e operações de inteligência, para encorajar a cooperação entre os integrantes da NAAG e da Associação Nacional dos Procuradores Gerais dos Ministérios Públicos. A resolução prevê a assistência recíproca por canais informais, sempre que isso for consistente com as respectivas legislações. A necessidade de esforço coordenado é óbvia, bem como a criação dos meios para facilitar o contato direto entre os estados.

– Alguns especialistas criticam a liberdade do fluxo de capitais. Hoje é mais fácil lavar dinheiro?

– Ficou mais fácil para criminosos remeterem milhões a outros países por meios eletrônicos. É muito difícil rastrear, mas não impossível. O livre fluxo de recursos é necessário para melhorar a economia, mas deve-se insistir em leis que exijam a comunicação de movimentações de grandes somas. Há nos EUA uma regra que obriga o relato de qualquer transação de US$ 10 mil ou mais. O desafio é que os criminosos também sabem disso e tentam contornar a restrição. A questão é encontrar a trilha do dinheiro. Se podemos segui-lo, encontraremos a pessoa por trás dele.

Publicado no site JBOnline, em 2005. Esta versão foi extraida do site Control Contábil


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Os amish, uma seita protestante pacifista que rejeita o progresso ( 2006 )

Os amish são uma comunidade fundamentalista protestante pacifista que se mantém deliberadamente fora da modernidade e que conta com menos de 200.000 membros divididos em várias regiões dos Estados Unidos.

Presentes sobretudo em Pensilvânia (leste), assim como em Ohio (norte) e em Indiana (norte), os amish formam uma comunidade próspera de agricultores e artesões com um modo de vida simples e austero.

Os amish se deslocam em carroças puxadas por cavalos e respeitam o Ordnung, um código de conduta centrado nos valores evangélicos e que define o que é permitido e o que é proibido.

Rejeitando qualquer influência do mundo exterior, eles não usam eletricidade e não têm o direito de possuir televisão, rádio ou computador.

A implantação deles no condado de Lancaster, na Pensilvânia, é um trunfo turístico para a região.

Nesta região, carros se misturam com carroças dirigidas por homens vestidos de preto e com chapéus de abas largas, enquanto que mulheres e meninas usam vestidos longos.

A maior parte dos amish é de trilíngues: eles falam um dialeto próximo do alemão, celebram seus eventos religiosos em alemão e aprendem o inglês na escola.

A escola só é obrigatória até 14 anos, desde uma lei da Corte Suprema de 1972.

Os amish não aceitam nenhuma ajuda do governo e não têm o direito de recorrer à justiça.

Organizado de forma muito descentralizada, o movimento amish é uma dissidência da comunidade protestante dos menonitas, um movimento anabatista que apareceu na Suíça no momento da Reforma, no século XVI, e que considera que somente os adultos podem ser batizados, depois de confessar sua fé.

Um pregador radicado na Alsácia, Jakob Amman, considerava que o movimento menonita estava se afastando de seus princípios fundadores. Então ele fundou o movimento amish em 1962. Seus discípulos começaram a emigrar para os Estados Unidos durante a Revolução francesa para fugir do alistamento militar.

Publicado no site O GLOBO, em 2006

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"Nenhuma escola de Medicina ensina compaixão" ( 2009 )


Entrevista com Patch Adams

Ao virar tema do filme de Hollywood, o médico norte-americano “Patch” Adams viu sua maneira diferente de encarar a medicina, que ressalta a importância do amor, da alegria e da criatividade no trato com o paciente, espalhar-se pelo mundo. Por Carina Rabelo


Aos 64 anos, o revolucionário e contestador médico norte-americano Hunter Patch Adams pouco carrega do estilo cômico e inocente com que o ator Robin Williams o interpreta no filme Patch Adams – O amor é contagioso. Crítico, ácido e politizado, ele ganhou fama por defender a alegria, o humor, o amor e a criatividade como os melhores remédios da boa medicina. Suas idéias o tornaram o principal ícone da luta pela humanização na saúde no mundo

Desde a divulgação de seu trabalho no cinema, a introdução de palhaços nos hospitais se tronou uma realidade global. Através do Instituto Gesundheit, fundado por ele em 1971 nos Estados Unidos, Adams e sua equipe fazem atendimento gratuito e levam grupos de palhaços – entre atores e profissionais de saúde – a países castigados pela pobreza e a campos de refugiados. Leitor voraz e avesso à televisão, o médico coleciona mais de 30 mil livros na biblioteca de sua casa. Como médico palestrante, organizou aulas para mais de 15 milhões de pessoas em 68 países. Visita com frequência o Brasil.

A RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE SE DETERIOROU COM A INSTRUMENTALIZAÇÃO DA MEDICINA. AS CONSULTAS SÃO RÁPIDAS E OS MÉDICOS RECORREM DE IMEDIATO À TECNOLOGIA. QUANDO A MEDICINA DEIXOU DE SER HUMANA?

Nos tempos de Hipócrates, os médicos que valorizavam o poder e o dinheiro deviam ser tão indiferentes aos pacientes quanto os de hoje. Mas eram mais humildes. Tinham menos tecnologia e medicamentos, admitiam suas limitações e não eram tão arrogantes. O problema é que nenhuma escola de medicina do mundo ensina a compaixão; além disso, a medicina não cura, cuida. A cura é um mistério. Infelizmente, o capitalismo infectou a medicina, a educação, as leis, tudo. O que vemos no comportamento dos médicos de hoje é a expressão desses valores. Eles são seduzidos pela idéia de poder, e os que não usam a inteligência caem na armadilha da soberba.

ATUALMENTE, UM DOS PROGRAMAS DE TEVÊ MAIS POPULARES NOS ESTADOS UNIDOS É O HOUSE, CUJO PROTAGONISTA É UM MÉDICO GENIAL, RUDE E ARROGANTE, ESTE TIPO DE FRIEZA TEM SIDO VALORIZADO NA CLASSE MÉDICA?

Abomino este programa. Ele exporta para todo o mundo um médico insuportável e arrogante. O pior é que, de alguma forma, o médico é perdoado por ser brilhante. No meu hospital, ele seria demitido. É terrível projetar esse tipo de imagem sobre os estudantes de medicina. Justificar o distanciamento emocional para que o trabalho científico seja acurado é uma bobagem. Médicos que tratam pacientes com frieza fazem o mesmo com seus familiares. Não tem nada a ver com medicina, mas com caráter.

O SR. ATRIBUI A ATUAL CRISE DE VALORES A UM MODELO MASCULINO DE DOMINAÇÃO. POR QUE SERIA DIFERENTE SE AS MULHERES ESTIVESSEM NO PODER?

Todos os problemas do mundo foram causados por homens, com suas hierarquias e competições. Não consigo lembrar de nenhuma grande crise gerada por mulheres. Esse sistema de valores de dinheiro e poder, popular entre os homens, intoxicou o mundo. Já estive em muitos campos de refugiados e em mais de 2 mil orfanatos. São elas que distribuem alimentos, trocam fraldas, cuidam dos feridos, enquanto eles fazem as guerras e acabam com o mundo na luta por dinheiro e poder. Seja pela natureza material, seja por um encargo biológico de carregar e criar crianças, são as mulheres que zelam pela humanidade. Essa intoxicação masculina tomou conta dos governos, das corporações e do nosso sistema de educação, que não quer formar pensadores críticos, apenas bons consumidores. É um sistema que transforma amor em sentimento perigoso.

O SR. DEFENDE A CONSTRUÇÃO DE UM HOSPITAL MODELO, NO QUAL TODOS OS FUNCIONÁRIOS TENHAM O MESMO SALÁRIO E EXERÇAM A PROFISSÃO POR AMOR. MAS NÃO CONSEGUE LEVANTAR FUNDOS PARA AS OBRAS. APESAR DE SUAS CAUSAS NOBRES, SEU TRABALHO SÓ FOI RECONHECIDO INTERNACIONALMENTE APÓS O FILME SOBRE SUA VIDA. É CONSIDERADO UTÓPICO PELA MAIORIA DAS PESSOAS. COM TANTAS DIFICULDADES, PENSOU EM DESISTIR?

Se você é um pensador, é difícil não defender essas idéias. Não é difícil viver num sistema de compaixão e generosidade. Difícil seria viver fora dessa ética, me olhar no espelho à noite e constatar que meu dia não me dá motivo para sentir orgulho. É verdade que tento fazer o hospital há 39 anos e nem consegui o terreno para construí-lo. Mas não importa. Minha verdadeira luta é ajudar a criar um mundo em que ninguém se lembre do que é guerra, em que ninguém considere possível fazer mal a outro indivíduo. É um objetivo muito maior do que um hospital. É provável que eu nunca o atinja na prática. Mas posso afirmar que tenho a vida que sempre sonhei e sou feliz com o que faço. Ajudo as pessoas a pensar.

SEUS PAIS TAMBÉM ERAM INTERESSADOS EM CAUSAS HUMANITÁRIAS?

A melhor base de caráter que tive foi a minha mãe. Ela me mostrou que não há nada mais gratificante do que ser amável e gentil com as pessoas. Nunca a vi agredindo alguém ou dizendo coisas desagradáveis. Numa realidade de dominação por dinheiro e poder, uma mãe amável como a minha é uma revolucionária. São pessoas como ela que vão preservar nossa espécie, ameaçada pela competição e pelo desamor. Ela era uma humilde professora da 5ª série que desenvolveu em mim um senso de sonho e curiosidade. Ela me faz valorizar o conhecimento e me deu autoestima.

COMO FOI A EXPERIENCIA DE SER INTERNADO EM UM HOSPITAL PSIQUIÁTRICO AOS 17 ANOS?

Quando meu pai morreu, na Guerra do Vietnã, meu coração ficou partido. Eu e minha mãe saímos da costa norte-americana e voltamos para o sul em 1961, numa época em que os negros não tinham direitos. De imediato, me engajei em movimentos pelos direitos civis, mas não soube lidar com o mundo de violência e injustiça. Fui hospitalizado três vezes entre os 17 e 18 anos, após tentar o suicídio. O tratamento foi terrível. Eles me davam milhares de pílulas que não resolviam meus problemas. Na última internação, tive um insight. Não se tira uma vida, não se tomam remédios: faz-se uma revolução. Quando me recuperei, sabia que poderia fazer aquilo que quisesse. Estava pronto para construir o mundo que sonhava.

O SR. E CONTRA O USO DE ANTIDEPRESSIVOS?

Sim. Depressão é um diagnóstico da indústria farmacêutica, não uma doença. É um sintoma da solidão. Mas nenhuma dessas empresas conseguiria faturar bilhões de dólares com a depressão se a chamasse de solidão. Acredito que quem tem a presença constante de um amigo, mesmo que seja apenas na mente, não pode ter depressão. Tudo é uma questão de ter o amor do outro. Preencher sua vida com o privilégio de estar vivo. Se você tem amigos e comida, não há o que reclamar. Mas, se formos absorvidos pelo sistema de consumo, nada será suficiente. A verdade é que, se você tem amigos e comida, é um milionário.

POR QUE NÃO APROVOU O FILME PATCH ADAMS – O AMOR É CONTAGIOSO, DE 1998, QUE SE TORNOU CONHECIDO INTERNACIONALMENTE?

Assim como na medicina, a indústria do cinema está infectada pelo dinheiro e pelo poder. Apenas os filmes independentes não são feitos para vender ingressos. Mas, como o que vende em Hollywood é humor ou violência, minha história tinha de ser transformada em comédia. Há erros, estereótipos, e não houve um olhar político sobre meu projeto. Na única cena dramática, eles colocaram uma personagem feminina como vítima, que na verdade foi meu melhor amigo. Foi muito humilhante essa troca. Para mim e meus amigos, esse filme não significou nada. Em nosso trabalho, o carinho é maior do que aquilo. Patch Adams não teve nenhuma crítica positiva nos EUA, apenas de ter sido o lançamento de fim de ano mais visto da história. Eu queria que eles fizessem um filme com nosso hospital construído, que mostrasse nosso verdadeiro trabalho.

O QUE SENTIU QUANDO SEU MELHOR AMIGO, QUE COLOCAVA EM PRÁTICA SEUS ENSINAMENTOS, FOI ASSASSINADO POR UM PACIENTE?

O evento não foi tão melodramático como no filme. Estávamos na faculdade havia seis anos quando ensinei a medicina que o matou. Chorei muito e me perguntei se teria sido irresponsável por permitir um paciente perigoso na nossa casa. Foi quando, através de uma mensagem espiritual, soube que meu amigo não queria que eu desistisse. Queria que eu desse continuidade à missão de trabalhar por um mundo sem violência.

ARREPENDEU-SE DE AUTORIZAR A PRODUÇÃO DO FILME?

Passei a valorizar a obra de modo diferente. Se o sistema de valores em que vivemos é baseado em dinheiro e poder, os românticos e idealistas – externos a esse sistema se sentirão incluídos, mesmo que na forma superficial do cinema. O filme me tornou um herói, um símbolo do sistema de valores da generosidade e da compaixão. Graças a isso, levo ao mundo minhas idéias. O filme é usado como proposta educativa em universidades e introduziu o tema da humanização do atendimento nas escolas de medicina. Recebi milhares de projetos de pessoas que diziam tê-lo visto mais de 30 vezes. Pessoas que levantaram clínicas livres, orfanatos ou que decidiram se tornar médicos honestos. Em geral, filmes sobre medicina são bobos, mas há bons exemplos, como o brilhante O Barba Ruiva, de Akira Kurosawa, lançado em 1965 (cuja história se passa num hospital de caridade em Tóquio no século 19).

O ESTÚDIO UNIVERSAL PROMETEU PARTE DO FATURAMENTO DA BILHETERIA PARA A CONSTRUÇÃO DE UM HOSPITAL, MAS NUNCA LHE PAGOU. QUIS PROCESSÁ-LOS?


Não é meu estilo estar inserido no sistema do dinheiro e do poder para contratar um advogado e brigar nos tribunais. Meu estilo é olhá-los nos olhos, apertar suas mãos e fazê-los encarar intimamente a promessa que fizeram e não cumpriram.

COMO SERIA O HOSPITAL DE SEUS SONHOS?

Não é um hospital perfeito, mas um modelo que valoriza o carinho aos pacientes. O tema me interessa desde que entrei na faculdade. Nos hospitais, queria ouvir todos os problemas das pessoas e saber o que elas desejavam. Tudo começa na entrevista. É preciso passar mais tempo com o paciente. O hospital precisa integrar todas as formas de terapia artística, dando espaço a todos os tipos de cura, de xamãs e acupuntura. Uma estrutura que insista nos sistemas de educação ambiental, política, social e econômica e que ajude os pacientes e funcionários a se tornar pensadores. Hollywood reduziu a idéia a um hospital bobo. Não é fazer graça, mas justiça social. Nas entrevistas, haveria uma troca íntima e verdadeira entre o médico e o paciente. Nada que fosse importante na vida deste último seria ignorado ou tratado superficialmente.

QUAL A SUA OPINIÃO SOBRE O GOVERNO GEORGE W. BUSH E O QUE ESPERA DAS POLÍTICAS DE BARACK OBAMA PARA O SISTEMA DE SAÚDE NOS EUA?

Bush e seu vice presidente Dick Cheney são fascistas e assassinos em massa. Mereciam ser julgados em tribunais por crimes de guerra e receber condenação perpétua. Obama é inteligente, porém de centro-direita. Ele colocou conservadores em sua transição para algo mais radical e efetivo. Mas não creio que ele seja um fantoche na mão dos poderosos. Ele herdou um grande lixo dos anos da apropriação do governo pelas grandes corporações. Espero que ele faça bom uso de todas as pessoas que lutaram por ele e que trabalhe por causas sociais. Não gosto do que ele está fazendo com a saúde pública, porque não inclui o cuidado com todas as pessoas como meta. Não há desculpa para o país mais rico do mundo não dar atenção a todo seu povo. Encorajo minha audiência a fazer o melhor possível em suas localidades, para ajudar Obama a fazer algo de bom. Estou tentando reunir-me com ele.

PENSOU EM SEGUIR CARREIRA POLÍTICA PARA IMPLEMENTAR SEUS PROJETOS NA ÁREA DA SAÚDE?

Ser cidadão é uma carreira política. Quanto mais me dedico a estudo e leituras, mais entendo o mundo. É como posso me educar para ser um bom cidadão. Desde que meu pai morreu, envolvi-me com política e, durante a era Bush, quase concorri a um cargo no Congresso. Mas eu e alguns amigos políticos concluímos que seria melhor continuar com meu trabalho de campo.

ALGUNS MÉDICOS TRADICIONALISTAS VEEM O HUMOR COMO UMA ABORDAGEM SUPERFICIAL DOS PACIENTES TERMINAIS. QUAL É A IMPORTÂNCIA DA DIVERSÃO PARA OS CASOS DE SOFRIMENTO EXTREMO?

O estúpido mundo do poder e do dinheiro não percebe que o humor é ainda mais procurado pelas pessoas do que o amor. O que querem as pessoas ao sair no fim de semana com amigos ou ao viajar de férias? Diversão. O humor pode chegar a níveis bem profundos no tratamento dos pacientes. Não tenho estresse e problemas mentais por 45 anos graças ao amor e à diversão. Nas zonas de guerra, campos de refugiados ou hospitais com crianças morrendo de câncer, acha que o humor é menos importante do que o amor? Como uma mãe que vê o filho morrer pode sobreviver sem diversão e amor? É só olhar para países em que grande parte da população é pobre, como o Brasil. O que importa para as pessoas é tocar a vida com o pouco que têm. Bastam um pouco de feijão, de arroz, uma cerveja e alguns amigos para contar piadas. No mundo de dinheiro e poder, as pessoas querem diminuir o valor disso. No meu mundo, de compaixão e generosidade, a diversão é a maior das dádivas.

O SR. RECEBEU MUITAS CRITICAS DE COLEGAS POR SUA POSTURA NÃO CONVENCIONAL?

Eles nunca fizeram críticas na minha frente. Então, não sei. Sou favorável ao aborto e algumas pessoas não gostam disso. Mas não me importa. Trinta e cinco anos atrás, mitos médicos não aprovavam a medicina complementar, atualmente, a idéia é bem aceita. É muito difícil argumentar com os grandes ambiciosos da medicina. Eles não gostam de mim, então imagino que falem pelas minhas costas. Ficam envergonhados quando levanto temas polêmicos nas conferências.
 
Publicado na revista PLANETA, em 2009. Este texto foi extraído do site do professor Aloisio Fritzen
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A era dos pequenos tiranos ( 2013 )


A educação moderna passa por uma crise de valores. Para muitos filhos, não está claro de quem é a autoridade na relação e o que vemos é o surgimento de uma legião de pequenos tiranos, crianças que não aceitam ordens e estabelecem seus próprios princípios. “Saímos de uma educação tradicional para tentar chegar a uma educação democrática, mas muitas famílias não conseguiram alcançar esse objetivo. Deixamos para trás um modelo patriarcal para termos hoje o filharcal, no qual a criança é quem manda”, ressalta a professora Ester Petroni, do Departamento de Psicologia da Universidade Sagrado Coração (USC).

Muito disso se deve à falta de firmeza na hora de educar. Sem tempo para se dedicar à casa e aos filhos, muitos pais acabam fazendo as vontades dos pequenos sem questionar para satisfazê-lo momentaneamente e ter um pouco de paz enquanto estão em sua companhia. Esperando ser um bom pai, uma boa mãe, muitas pessoas estão cedendo às vontades dos filhos sem colocar limites, regras, questões morais. Os pais renegam o autoritarismo do passado, mas não encontraram ainda o modelo de autoridade necessária. “Todo ser humano precisa da autoridade da família. Isso dá segurança. É através disso que os pais realmente demonstram o quanto o filho é importante para ele”, frisa Ester.

A psicóloga Flávia da Silva Ferreira Asbahr, docente do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Bauru, lembra que muitos pais têm dificuldade de falar não para os filhos, o que é um grande equívoco. “As crianças precisam de firmeza e segurança em sua educação. Quando percebem que há uma brecha, elas jogam com isso e invertem os valores.”

Para exemplificar, ela cita a questão da chantagem emocional como um grande deslize de pais e mães. Isso ocorre, por exemplo, quando o pequeno não quer se alimentar direito e, para fazer o filho comer, os pais acabam prometendo presentes ou pequenas recompensas a eles. Nesse momento, a questão da autoridade desmorona, pois a criança percebe que a vontade dela é soberana e começa a jogar com os pais. “Essa crise de autoridade se espalha pela sociedade. Hoje, os professores reclamam muito dos ‘pequenos reizinhos’ que chegam à escola sem aceitar não como resposta”, frisa.

É importante lembrar que a formação do caráter e da ética dos seres humanos acontece justamente na socialização primária, ainda no seio da família. “A família educa, a escola ensina”, resume Flávia. Assim, é necessário que os pais tenham tempo e disposição para passar valores e ensinamentos aos filhos desde muito cedo. E isso se dá também pela negação e pela autoridade. “Os pais precisam deixar claro o que esperam dos filhos, mostrando que existem consequências para todos os atos. Isso tem que ser colocado de forma dialogada, mas com firmeza”, explica Ester.

As crianças de hoje crescem em um ambiente mais aberto a diálogos e no qual suas opiniões são valorizadas, diferentemente do que ocorria há décadas passadas, quando existiam determinações mais rígidas de espaço entre adultos e crianças. Essa porta aberta tem permitido até que os pequenos influenciem diretamente em assuntos que seriam de total responsabilidade dos adultos, como aquisição de bens e decisão de ter outro filho. “Existem pesquisas que mostram que 40% das compras feitas pelas famílias são demandas das crianças. Elas determinam até a cor do carro ou para onde a família deve viajar”, ressalta Flávia.

Toda essa força precisa ser bem medida e discutida, já que esse ser ainda está em formação intelectual e de valores. Teria ele tanta propriedade e entendimento para fazer esses tipos de escolha?

“Trocamos o ser pelo ter, tudo pode hoje em dia!”, salienta a professora Ester. Isso está fazendo com que as crianças fiquem sem um direcionamento claro de sua vida. Ao chegar na escola, onde começa a viver os primeiros conflitos sociais, ela se perde e não sabe lidar com as adversidades, não respeitando ordens e regras.

Como será o amanhã?

A psicóloga clínica Sandra Zanetti, mestre e doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo, ressaltou em seu artigo “A ausência do princípio de autoridade na família contemporânea brasileira” que a família passa por um momento de perda de referenciais. “O modelo recebido nas gerações anteriores parecem obsoletos e novas estratégias ainda não parecem eficazes”, destaca. Buscando não repetir padrões antigos, os pais tentam imprimir uma nova ordem em casa, mas ainda não sabem muito bem qual seria ela.

A redução da autoridade gera indivíduos que assimilam ser “sujeitos de direitos, dentro e fora da unidade doméstica, ficando em segundo plano a condição de sujeitos de deveres”, cita a autora.

Sem ter um referencial em casa, os filhos acabam buscando modelos de autoridade em qualquer parte. Até mesmo na televisão, a grande companheira durante boas horas do dia. “As propagandas nos canais infantis mostram que a felicidade está no ter, e não no ser. Se você não tem aquela bota, aquele brinquedo, você não vai ser feliz. Esse é o modelo que as crianças acabam absorvendo quando não têm uma estrutura forte em sua família”, ressalta a psicóloga - e mãe - Flávia da Silva Ferreira Asbahr.

Publicado no site JCNet, em 2013

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“A internet nos suga como uma esponja” ( 2009 )



Um dos maiores palestrantes do mundo empresarial diz que viver conectado é prejudicial a nosso cérebro
 
Para Nicholas Carr, um dos palestrantes mais valorizados do mundo dos negócios, a dependência da troca de informações pela internet está empobrecendo nossa cultura. Mais ainda: nosso intelecto, ao se acostumar aos múltiplos estímulos das redes sociais, aos e-mails e aos comunicadores instantâneos, perde a capacidade de raciocínios elaborados. Autor de um famoso artigo cujo título resume o conteúdo – “O Google está nos tornando mais estúpidos?” – , Carr está preparando um livro de nome igualmente provocativo – numa tradução literal, O raso: o que a internet está fazendo com nosso cérebro. Ele falou a ÉPOCA durante uma visita ao Brasil para uma palestra a 4.500 líderes empresariais, num dos maiores eventos para executivos do país.
 
Nicholas Carr

QUEM É: Americano, 50 anos, é formado em Harvard e autor de livros de tecnologia e administração, é membro do conselho editorial da Enciclopédia Britânica

O QUE FEZ: Ficou famoso pela crítica à qualidade de “obras abertas” da internet, como a Wikipédia, e por artigos em que afirma que as empresas deveriam terceirizar o investimento em tecnologia da informação

ÉPOCA – A internet afeta a inteligência?

Nicholas Carr – Você fica pulando de um site para o outro. Recebe várias mensagens ao mesmo tempo. É chamado pelo Twitter, pelo Facebook ou pelo Messenger. Isso desenvolve um novo tipo de intelecto, mais adaptado a lidar com as múltiplas funções simultâneas, mas que está perdendo a capacidade de se concentrar, ler atentamente ou pensar com profundidade. Isso é um resultado da dependência crescente em relação à internet. Essa forma de pensar vai reduzir nossa habilidade para pensar contemplativamente. Ela prejudica nossa cabeça.

ÉPOCA – Quais seriam as consequências?

Carr – A riqueza de nossa cultura não é apenas quanta informação você consegue juntar. Ela tem a ver com os indivíduos pensando profundamente sobre a informação, refletindo sobre ela, avaliando pessoalmente os dados que recebe e não se deixando passivamente bombardear por vários estímulos. Estamos perdendo isso agora. Toda a cultura fica mais rasa. Temos acesso democrático à informação, mas o resultado é mais pobre. Temos menos condições de compreender as grandes obras da arte, da ciência ou da literatura, que exigem uma concentração mais profunda.

ÉPOCA – As pessoas deveriam ficar desconectadas de vez em quando?

Carr – Sim. Deveríamos desconfiar da internet. É claro que conseguir bastante informação útil é parte de nossa vida moderna. Mas precisamos encorajar continuamente o outro lado, que é a aquisição calma e contemplativa do conhecimento. Isso exige ficar fora do fluxo contínuo de informação. Só não sei se isso será possível porque nossa vida social está cada vez mais dependente de quão conectados estamos. Seu grupo de amigos está embrulhado em redes sociais na internet. Você precisa da internet para executar seu trabalho. Não para de olhar para seu BlackBerry. Não é mole se desligar disso tudo.

ÉPOCA – A filosofia grega foi construída em cima de debates. O pensamento de Platão são conversas com seus discípulos. Por que não daria para erigir conhecimento a partir da interação com os outros?

Carr – Nos Diálogos de Platão, temos duas pessoas dedicadas a uma conversa atenta sobre determinado tema. Se você entra on-line, encontra dezenas de pessoas trocando mensagens de texto, vendo e-mails, escrevendo no Twitter e pulando de uma página para outra. A troca de informação ocorre com interrupções o tempo todo. Sócrates sentava-se embaixo de uma árvore e pensava longamente enquanto conversava com seus discípulos. É muito diferente do que fazemos agora.

ÉPOCA – Uma das maiores lojas on-line, a Amazon, vende livros. As pessoas baixam livros no Kindle. Até o senhor vende livros. Isso não significa que as pessoas ainda leem textos extensos?

Carr – É verdade que as pessoas ainda lerão livros por muito tempo. Mas o porcentual de tempo dedicado à mídia impressa vem caindo. A média americana é de um livro por dia, o que ainda é muito bom. Só que o ato de ler uma página após a outra fica cada vez mais difícil à medida que você se adapta à comunicação da internet. Eu mesmo sinto isso. Antes eu me sentava e lia por horas. Agora, fico pensando se devia conferir meu e-mail ou acho ruim não encontrar hiperlinks no texto.

“AS CRIANÇAS NÃO DEVEM MEXER EM COMPUTADORES DE JEITO NENHUM. OS PAIS DEVEM DEIXAR OS FILHOS AO MÁXIMO LONGE DAS TELAS”

ÉPOCA – Essa habilidade para múltiplas tarefas e para administrar várias informações simultâneas não nos dá, em compensação, maior capacidade para criar novas ideias?

Carr – Certamente temos maior capacidade para encontrar informação ou relacionar uma com a outra. Mas dependemos cada vez mais de conexões externas. Você estabelece uma relação porque clicou em um hiperlink que alguém deixou lá. Já construir as próprias relações entre um fato e outro exige um tempo de reflexão própria, que não estamos tendo.

ÉPOCA – Essa visão negativa da internet não é apenas o medo da mudança?

Carr – Não há dúvida que, toda vez que uma tecnologia nova aparece, algumas pessoas imaginam que tudo vai desmoronar. Sim. É preciso ter essa visão cética. Por outro lado, também devemos desconfiar quando ouvimos alguém glorificando as novas tecnologias e prometendo uma nova utopia. Recomendo que as pessoas não sigam o que eu digo cegamente. Mas que examinem o próprio comportamento. Testem em si mesmos o que estou dizendo.

ÉPOCA – Os cursos on-line vão revolucionar a educação?

Carr – Existe empolgação em torno dos cursos on-line porque parecem cortar os custos. Um professor poderia dar aula para milhares de alunos, em vez de apenas uma turma de algumas dezenas. Mas não acho que a educação on-line vá substituir a tradicional. Ela pode funcionar como complemento para o professor ter um material de apoio na sala de aula ou para o aluno reforçar em casa o que aprendeu na escola. Outra utilidade dos cursos on- -line é a formação técnica profissional em casos específicos. Existe um aspecto importante na educação, que é juntar os alunos fisicamente para conviver e trocar experiências. Isso vai além de apenas assistir a uma aula. Tem a ver com o lado comunitário da educação, que se perderia se passarmos tudo para o computador.

ÉPOCA – Como a tecnologia pode beneficiar a educação?

Carr – Por um lado, o que estamos vendo é que muitas escolas, especialmente universidades, começam a oferecer material on-line de seus cursos, inclusive algumas aulas. Isso é bom. Permite que gente de fora da universidade tenha acesso à informação de ponta e aulas de grandes pensadores. O perigo para as grandes universidades é que os alunos possam ter a ilusão de que terão acesso ao conhecimento apenas sentados diante de um computador. Aí o que acontece é que a eficiência de fornecer material on-line começa a capturar os investimentos financeiros, que deveriam ir para as universidades e escolas. Se um professor dá aula para milhões de alunos, quem vai pagar o salário dos outros?

ÉPOCA – Como atrair a atenção dos jovens que estão ligados nas redes de relacionamento e nos jogos da internet para a educação “formal”?

Carr – Naturalmente, não há como fazer isso. Nossa dependência dos serviços de internet não está mudando apenas nossos relacionamentos e nosso acesso ao conhecimento, mas também a forma como nossa mente funciona. Não é só entre os jovens, mas gente de todas as idades usa cada vez mais a internet. Nas escolas e em casa, os pais e os educadores têm sido excessivamente entusiastas do poder dos computadores. Temo que, como o cérebro constrói a maior parte das ligações entre os neurônios na juventude, o modo de pensar promovido pelo convívio com a internet predomine sobre a capacidade de análise. Os pais devem manter seus filhos o máximo longe das telas. Na verdade, acredito que as crianças não devem mexer em computadores de jeito nenhum. Mais tarde, quando entrarem na adolescência, terão de aprender a lidar com a internet para sua vida adulta, social e profissional. Mas antes disso não.

ÉPOCA – Como o senhor fez com seus filhos?

Carr – Minha filha tem 24 anos, meu filho 19. Então, quando eram crianças não havia tanto acesso à internet e a computadores. Nem as redes sociais existiam. Mas mesmo naquela época eu já sabia que as mídias usadas pelas crianças teriam influência em sua capacidade cognitiva futura. Não quero dizer que a internet seja ruim. Ela é essencial para encontrarmos pessoas e informações úteis. Mas ela é como uma esponja. Vai sugando todos os aspectos da vida. E nos obriga a se adaptar a ela. É o futuro da humanidade. Só que perderemos alguma coisa no meio do caminho.

Publicado na revista ÉPOCA em 2009

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Chegou o Carnaval!


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Publicado no site da revista HISTÓRIA VIVA, data ignorada

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"Metade dos documentos de posse de terra no Brasil é ilegal" ( 2013 )


Grilagem

"Metade dos documentos de posse de terra no Brasil é ilegal"

A afirmação é do geógrafo Ariovaldo Umbelino, para quem o programa Terra Legal permitirá que terras do patrimônio público ocupadas ilegalmente se transformem em propriedade privada 

O geógrafo, pesquisador e professor da USP Ariovaldo Umbelino fala sobre a situação de propriedades que utilizam terras retiradas do patrimônio público ilegalmente, os famosos casos de grilagem, e também se diz contrário ao programa “Terra Legal” do Governo Federal.

“Nós temos no Brasil hoje um numero elevadíssimo de escrituras onde não há fazendas”, comenta o geógrafo. Ele explica que no país existe um número alto de fraudes na documentação de terras, principalmente em municípios com importância econômica, como em São Félix do Xingu, no Pará, que possui o segundo maior rebanho de carne bovina do país.

No começo de 2012, o geógrafo integrou um grupo que realizou um comparativo entre o processo de retomada das terras devolutas do portal do Paranapanema, em São Paulo, com o que estava acontecendo em São Félix do Xingu. Advogados da Faculdade de Direito do Pará também participaram do projeto e o pesquisador liderou a equipe que foi a campo analisar a situação da região.

“Nós verificamos que, na realidade, praticamente 100% dos documentos legais do cartório têm que ser anulados, porque são falsos. A corregedoria do Pará anulou todas as escrituras registradas no cartório de registro de imóveis de São Félix do Xingu”, afirma. E também indaga: “Ninguém é dono das terras mais. Bem, dono do papel. Mas quem está lá na fazenda hoje?”.

Umbelino alerta que o problema não é uma situação isolada ao norte do Brasil. Atualmente ele enfrenta a mesma realidade em outros estados do país. “Isso tem em todos os municípios do Brasil. Estou fazendo esse trabalho lá em Minas Gerais, em Riacho dos Machados, é a mesma coisa. Metade dos documentos é ilegal”, afirma.

Programa Terra Legal

O programa é uma iniciativa do Ministério de Desenvolvimento Agrário que visa promover a regularização fundiária de ocupações em terras públicas federais situadas na Amazônia Legal. Teve início em 2009, durante o governo Lula e, de acordo com o Governo Federal, a meta se baseia em legalizar as terras ocupadas por cerca de 300 mil posseiros. Com o projeto, o governo também busca reduzir o desmatamento, ampliar as ações de desenvolvimento de forma sustentável na região e reduzir os casos de grilagem.

Entretanto, para o geógrafo, não é bem isso o que acontece. Ariovaldo acredita que as medidas provisórias propostas pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que autorizam a doação de porções de terras públicas e aceleram os processos de regularização das propriedades, permitem a legalização de mil e quinhentos hectares. Para ele, isso é um ato inconstitucional e que também contribui na legalização dos grilos. “O direito a legitimação de posse só pode ser feito para cinquenta hectares. Como eu elevo para mil e quinhentos? Estou ferindo a Constituição”, diz.

Ele ainda afirma que há formas de burlar a lei: “Coloco mil e quinhentos no nome de um filho, depois mil e quinhentos no nome de outra filha, e legalizo dez mil, vinte mil hectares”. Umbelino defende que há o princípio baseado na ilegalidade e outro baseado na justiça social. “Quem tem terra não tem que ter mais terra”, conclui.

Publicado na revista CARTA CAPITAL, em 2013

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Eleições americanas: Em 2000, um milhão de votos de negros não foram contados ( 2004 )



Greg Palast denuncia usurpação de Bush:

“Um milhão de votos de negros não foram contados em 2000”

Palast destaca o exemplo do condado Gadsden, na Flórida, “onde há a mais alta percentagem de votos negros no Estado e um em cada oito votos foram invalidados. Na contagem, a leitora ótica não reconhecia voto em ‘Al Gore’. Apenas o nome ‘Gore’ valia”

“Um milhão de votos de eleitores negros não foram contados na eleição presidencial de 2000”, denuncia o jornalista norte-americano, Greg Palast, em seu artigo publicado no jornal San Francisco Chronicle, no dia 20.

A denúncia acrescenta mais elementos para desmascarar a fraude através da qual “baby” Bush roubou a eleição e usurpou a presidência, ao burlar a votação na Flórida para açambarcar a totalidade dos delegados daquele estado, falseando dessa forma a composição do colégio eleitoral. No cômputo geral, Bush perdeu as eleições por 500 mil votos para o democrata Al Gore, sendo que os votos dos negros eram em vasta maioria a favor do canditato democrata.

Palast esclarece, detalhando o exemplo do que aconteceu no condado Gadsden do Estado da Flórida “onde há a mais alta percentagem de votos negros no Estado aconteceu o mais alto percentual de votos anulados”.

Nas urnas deste condado “um em cada oito votos depositados nunca foi contado”.

Neste caso a contagem era feita por leitura ótica e “muitos votantes escreveram ‘Al Gore’. As leitoras óticas rejeitavam estes votos, pois estavam programadas para identificar ‘Al’ como uma ‘marca inválida’”. O convencionado nesta urna era o reconhecimento apenas para ‘Gore’.

“Contrastando com isso”, esclarece o jornalista, “no vizinho Tallahassee, a capital, a perda de votos foi perto de zero; praticamente todo voto foi computado. A diferença? Em Tallahasse, de maioria branca, os eleitores colocavam seus votos em scanners óticos. Se eles adicionassem qualquer marca inválida, recebiam automaticamente uma outra cédula com instruções para corrigir os erros da anterior”.

As rejeições forçadas se sucederam das mais diferentes formas para invalidar 1,9 milhão de votos. “Uma marca inválida, uma máquina congestionada, um cartão perfurado duas vezes farão o serviço”, esclarece Palast.

Essas perdas eram feitas de forma direcionada, de forma que “a Comissão de Direitos Civis vasculhou a duvidosa pilha de votos invalidados e concluiu que, dos 179.855 votos invalidados pelos funcionários da Flórida, 53% tinham sido colocados por eleitores negros. Na Flórida, um cidadão negro tinha a previsibilidade de votar errado na razão de 10 para um, em relação ao eleitor branco”.

“O comissário de Direitos Civis, Christopher Edley, recentemente apontado para reitor da escola de direito da Universidade de Berkeley, levou o estudo da Flórida para o nível nacional e sua equipe descobriu o fato desconfortável de que a Flórida era típica de toda a nação”.

“Philip Klinker, o estatístico trabalhando nas investigações de Edley, concluiu: ‘cerca de metade de todos os votos rejeitados nos EUA – cerca de um milhão de votos – eram depositados por eleitores não brancos”.

Palast acrescenta que “este ‘voto não contado’ não era acidente. Na Flórida, por exemplo, eu descobri que técnicos haviam alertado o escritório do governador Jeb Bush antes de novembro de 2000 da tendência racial nos procedimentos de contagem dos votos”.

“Aqui reside o problema. Um sistema de contagem de votos de apartheid que é longe de ser neutro politicamente. Dado que 90% do eleitorado negro vota nos democratas, se todos os votos ‘danificados’ tivessem sido computados Gore teria tomado a Flórida num passeio, sem falar no aumento de seu total de votos nacionalmente”.

“Como podemos resolver isso?”, questiona o jornalista e prossegue: “primeiramente vamos esclarecer acerca das convenientes desculpas de que a perda de votos é causada pela falta de educação do eleitor. Uma rede de televisão declarou, como um fato, que os eleitores negros da Flórida, recentemente registrados e com falta de educação tinham dificuldades com seus votos. Em outras palavras que os negros são muito tapados para votar”.

“Esta desculpa racista conveniente é completamente errada. Depois do desastre de Gadsden, o protesto público forçou o governo a mudar os procedimentos daquele condado de maioria negra de forma a torná-los similares aos dos de maioria branca. Resultado: perto de zero de perda nas eleições de 2002. Forma da cédula, máquinas e procedimentos, afirma o estatístico Klinker, controlam as perdas”, concluiu Greg.
 
Publicado no jornal HORA DO POVO, em 2004 
 
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Placar Edição de Colecionador SÓCRATES ETERNO ( 2011 )

Não levo meus netos para ver esse futebol ( 2012 )



IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO


Sei que o mundo mudou e, se querem minha opinião, ficou chato. Sei que o futebol mudou e se posso opinar, ficou muito chato. Não sou cronista esportivo, nunca fui. Também não sou daqueles que olham um jogo e ficam sabendo que os zagueiros deveriam avançar, que a tática usada foi 4.3.3 ou 5. 2.4 ou 1.9. 1. Vou ao campo ver a bola correr, ver dribles, defesas, gols, lançamentos, passes, grande jogadas, beleza. Quando leio ou ouço os comentaristas descreverem as partidas, fico com a sensação de que vi outro jogo e me sinto humilhado pela minha falta de conhecimentos. Será que por causa de minha ignorância estou achando tudo entediante, monótono, aborrecido, rotineiro? Ou o futebol definhou?

Eu ficava abismado quando, décadas atrás, ouvia ou lia que Tostão jogava esplendidamente sem bola. O que é jogar sem bola? Correr? Enganar o adversário? Fazer que vai, mas não vai e o seu marcador fica com cara de bobo? Humildemente tentei ler sobre técnicas, táticas, tentei olhar o jogo com sumidades, especialistas e confesso meu fracasso.

Tudo o que sei é que os jogos estão chatos, sem emoção, grandes lances, algo que me leve a aplaudir de pé. Não mexem mais comigo. Não fico ansioso para ir ao estádio. Neste campeonato paulista não entendo quando as torcidas se rejubilam com uma goleada de 5 ou de 6. Sobre qual adversário? Sobre times que não se mantêm nas pernas. Há um mundo de times jogando. Para quê? Que futebol exibem que justifique o sacrifício de comprar um ingresso, enfrentar fila (se bem que há muito não há filas), ficar na arquibancada ao sol de verão?

Vale algum sacrifício ir ver o Adriano, o Valdivia, o Luis Fabiano, o Lucas, e outros celebrados em campo? Por Deus! Por mais que procure, e procurei até em livros de filosofia, de física quântica, de lógica e, vejam só, até em teologia, e juro que não entendi por que se contrata a peso de ouro certos "craques". Por que meu time foi buscar esse imperador? Qual é o império dele? Não o de Júlio César, nem o de Alexandre, nem o de Gêngis Khan. Pagam a esse moço a quantia de R$ 400 mil para quê? Quantos jogos ele jogou? Com esses 400 mil poderíamos acertar a minha Ferroviária lá em Araraquara, à qual permaneço fiel, ainda que a veja flácida, sem músculos, sofrendo de Alzheimer, sem forças, como a maioria dos times do interior.

E esse Corinthians líder que agora é humilhado por todos que brincam, zoam, gozam com suas goleadas "arrasadoras" de 1 x 0? Acabou o orgulho, o destemor, o querer dar espetáculo. Sabe por que não dão espetáculo? Porque não têm talento. O futebol que já foi Cirque Du Soleil hoje é um barracão coberto por lona podre, furada. Qualquer um que entre em campo e passe o pé sobre a bola três vezes é um craque procurado por empresários, agentes, assessores, treinadores, dirigentes, e um mundo de gente que quer fazer dinheiro.

Sei que o tempo mudou, mas como esquecer a ânsia com que as populações do interior esperavam os jogos com os grandes? Havia caravanas que se deslocavam de uma cidade para outra e enchiam os (verdade que pequenos) estádios. Via-se o Corinthians, o Palmeiras, o São Paulo, o Santos, a Portuguesa, duas vezes ao ano. No turno e no retorno. E bastava. Agora se vê todos os dias. Se vê pela televisão, se vê plays e replays, se grava e se vê. Ficou igual a mulher nua em revista, em filmes, em novelas. Tudo que é demais satura. Banalizaram o futebol, assim como banalizaram a nudez, a sensualidade. Está chato, insosso. Digam: qual foi o grande jogo, a partida eletrizante deste capenga, chocho campeonato paulista?

Os técnicos são as grandes estrelas. Só que se juntarmos todos em campo, orientando uma partida, não darão a estatura de um Guardiola. Pegue o dedo do Scolari, o joelho do Mano Meneses, a boca do Leão, a arrogância do Luxemburgo, a apatia do Tite, a mudez do Muricy e tentem formar um técnico Frankenstein (este é para quem conhece literatura e cinema, tem certa cultura). Esse técnico não ganhará de ninguém. Está aí a seleção brasileira, inglória, sem provocar orgulho, sem nos fazer bater no peito. Batemos, sim, de raiva.

Sinto, não levei meus netos a um só jogo. Nem vou levar. Não tem por quê. Não quero deformá-los. Adoraria que crescessem dizendo: meu avô me mostrou a beleza do futebol! Não darei esse legado a Pedro, Lucas e Felipe, infelizmente. Ver o futebol que está aí é o mesmo que assistir ao BBB, A Fazenda, Mulheres Ricas, Zorra Total e pensar que se está vendo televisão. Nem esse campeonato é futebol nem esses programas e muitos outros são televisão pelo baixo nível, pela indigência, ausência de talentos, categoria, inteligência. São arremedos. E basta

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Como estrelei nas loucuras de 1929 ( 2010 )



O texto econômico que apresentamos hoje, nesta página, é de Marx – não o grande Karl, mas o grande Groucho Marx, o mais conhecido dos Irmãos Marx (Harpo, Chico, Groucho, e, no começo, também Zeppo e Gummo, os irmãos mais jovens).

Em 1929, antes da hecatombe, a especulação era mais simples do que hoje. Esses gênios financeiros, sempre experts na arte de tapear o próximo, ainda não haviam inventado os derivativos – e, por isso, quem queria especular não precisava saber o que é um credit default swap (CDS) ou uma collateralized debt obligation (CDO). Bem... na verdade também hoje ninguém sabe o que é isso, nem mesmo os seus promotores: James Cayne, o troglodita que foi manda-chuva do Bear Stearns - quinto banco “de investimento” (ou seja, especulativo) de Wall Street até sua quebra, em 2008 - nunca soube o que significava nenhuma dessas expressões, apesar de vender pacotes desses papéis aos bilhões para sua clientela de patos. Aliás, ele mesmo era um deles, comprando milhões de dólares dessa papelada, sem interessar-se pelo significado dos seus nomes – até porque, em verdade, com exceção do sr. Meirelles e seu “swap reverso”, ninguém acha que eles têm algum significado.
Dizem que somente os executivos do Goldman Sachs é que vendiam essa porcaria sem jamais comprá-la. O Goldman Sachs, como o leitor verá, já aparece citado por Groucho em 1929 – e, certamente, não por seus méritos humanitários.
Naquela época as coisas eram realmente mais simples - os papéis negociados eram meramente ações de empresas – e nem por isso a vigarice deixava de ser a mesma, levando ao mesmo desastre.
Os Irmãos Marx filmaram “Cocoanuts” (“No Hotel da Fuzarca”) exatamente em 1929. Por isso, Groucho cita várias vezes o filme em seu texto. Mas, prolongar esta introdução seria fazer o leitor perder tempo – o texto é um dos capítulos das memórias de Groucho, publicadas em 1951, e em 1991 no Brasil: “Groucho e Eu”, Marco Zero, trad. Maria José Silveira, págs. 161-169. 
 
C.L.

GROUCHO MARX

Logo um negócio muito mais quente do que o show business atraiu mina atenção, e a atenção de todo o país. Era uma pequena coisa chamada Bolsa de Valores. Tomei conhecimento dela pela primeira vez em 1926. Foi uma agradável surpresa descobrir que eu era um negociante astuto. Ou pelo menos assim parecia, pois tudo que eu comprava subia. Eu não tinha um assessor financeiro. Quem precisava disso? Você podia fechar os olhos, colocar o dedo em qualquer lugar do grande quadro, e as ações que você acabava de comprar começavam a subir. Eu nunca realizava os lucros. Parecia um absurdo vender uma ação por trinta quando você sabia que ela podia duplicar ou triplicar em um ano. 
 
Meu salário em Cocoanuts era cerca de dois mil por semana, mas isto era uma ninharia comparado com a papa fina que eu teoricamente estava ganhando em Wall Street. Entenda, eu gostava de fazer o espetáculo, mas estava muito pouco interessado no salário. Eu pegava dicas sobre o mercado de ações com todo mundo. É difícil acreditar hoje, mas incidentes como o que vou contar eram muito comuns naquele tempo.
Eu estava no elevador do Copley Plaza Hotel. O ascensorista me reconheceu e disse:
- Sabe, Sr. Marx, havia dois caras aqui agorinha. Gente muito importante. Eles estavam usando jaquetões com cravos na lapela. Estavam falando sobre o mercado de ações e, pode acreditar, irmão, pareciam saber muito bem do que estavam falando. Eles não sabiam que eu estava escutando, mas quando estou dirigindo este elevador, sempre fico de ouvido em pé. Não vou ficar a vida inteira para cima e para baixo numa caixa dessas! Enfim – ele continuou, – escutei um desses caras dizer para o outro: “Ponha todo o dinheiro que você possa conseguir na United Corporation”.
- Qual era o nome dessa ação? – perguntei.
Ele me dirigiu um olhar de desprezo.
- Qual é o problema, irmão. Seu ouvido não está funcionando bem? Eu já falei. O homem disse United Corporation.
Eu lhe dei cinco dólares e corri para o quarto de Harpo. Imediatamente o informei sobre essa mina de ouro em potencial que encontrara no elevador. Harpo estava acabando seu café da manhã e ainda estava de roupão.
- Tem um escritório de corretagem no saguão deste hotel – ele disse. – Espere eu me vestir e nós vamos lá em baixo e pegamos essas ações antes que a notícia se espalhe.
- Harpo, você ficou maluco? Se esperarmos até você trocar de roupa as ações podem subir uns dez pontos!
Assim, eu com meus trajes de passeio e Harpo com seu roupão corremos pelo saguão até o escritório de corretagem e rapidamente abocanhamos ações da United Corporation no valor de cento e sessenta mil dólares, com uma margem de vinte e cinco por cento.
Para os poucos sortudos que não se arruinaram em 29 e não conhecem Wall Street, deixe-me explicar o que significa uma margem de vinte e cinco por cento. Se você comprou, por exemplo, ações no valor de oitenta mil dólares, só tinha que pagar vinte mil dólares em dinheiro. O resto você ficava devendo ao corretor. Era como roubar dinheiro.
Uma quarta-feira de manhã na Broadway, Chico encontrou um palpiteiro de Wall Street, que lhe falou em segredo:
- Chico, acabei de vir de Wall Street e todo mundo por lá só está falando da Anaconda Copper. Estão vendendo a cento e trinta e oito dólares a ação e corre o rumor de que vai subir para quinhentos! Pegue antes que seja tarde demais! É uma barbada.
Chico, um conhecido amante do jogo, imediatamente correu até o teatro com as notícias dessa mina. Era um dia de matinê e atrasamos o espetáculo por trinta minutos até que nosso corretor finalmente nos assegurou que tinha tido a sorte de conseguir seiscentas ações. Estávamos extasiados. Harpo e eu éramos, cada um, os orgulhosos proprietários de duzentas ações desses títulos mais garantidos. Até o corretor nos cumprimentou. Ele disse:
- Não é sempre que alguém toma conta de uma companhia como a Anaconda.

O mercado subia, subia, subia. Quando estávamos nos apresentando em outras cidades, Max Gordon, o produtor de teatro me chamava toda manhã de Nova Iorque, pelo interurbano, para dar a cotação do mercado e suas predições para o dia. Seu prognóstico nunca variava. Estava sempre “subindo, subindo, subindo”. Até essa época eu não imaginava que pudesse ficar rico sem trabalhar.
Max me chamou uma manhã e me disse para comprar ações da Auburn. Era uma companhia de automóveis, agora já falecida.
- Marx – ele disse, – este é um jogo rápido. Vai pular que nem um canguru. Compre logo antes que seja tarde.
Como um adendo, acrescentou:
- Por que você não sai de Cocoanuts e esquece essa mixaria de dois mil dólares por semana que está ganhando? Isso é uma bagatela. Do jeito que você está administrando suas finanças, eu diria que você pode fazer muito mais dinheiro sentado num escritório de corretagem do que se matando em oito apresentações por semana na Broadway.
- Max – respondi, – não há dúvida de que seu conselho é sério. Mas afinal tenho algumas obrigações para com Kaufman, Ryskind, Irving Berlin e meu produtor, Sam Harris.
O que eu não sabia na época era que Kaufman, Ryskind, Berlin e Harris também estavam comprando na margem e que seus assessores financeiros acabariam por deixá-los “limpos” (o que foi certamente uma boa piada pra cima deles!). Enfim, a conselho de Marx imediatamente chamei meu corretor e o instruí para comprar quinhentas ações da Auburn Motor Company.

Algumas semanas mais tarde, eu estava passeando pelo campo de golfe, no Country Clube, com o Sr. Gordon. Um grande e caro charuto Havana estava pendurado nos seus lábios. Tudo estava certo no mundo e o céu estava nos olhos de Marx (junto com alguns cifrões). Justamente no dia anterior a Auburn tinha pulado trinta e oito pontos. Me virei para meu parceiro de golfe e disse:
- Marx, há quanto tempo isto vem deste jeito?
Marx respondeu tomando emprestado um verso de Al Jolson:
- Irmão, você ainda não viu nada!
A coisa mais surpreendente do mercado de 29 era que ninguém nunca vendia uma ação. O público apenas continuava comprando. Um dia, um tanto timidamente, perguntei a meu corretor em Great Neck sobre esse fenômeno especulativo.
- Não sei muita coisa sobre Wall Street – comecei me desculpando, – mas o que faz essas ações continuarem subindo? Não deveria haver alguma relação entre os lucros de uma companhia, seus dividendos e o preço de venda das ações?
Por sobre minha cabeça ele olhou para uma nova vítima que acabava de entrar no escritório, e disse:
- Sr. Marx, o senhor tem muito o que aprender sobre o mercado de ações. O que o senhor não sabe sobre títulos daria para encher um livro.
- Escute, meu bom homem – respondi, – vim aqui à procura de conselho. Se você não pode controlar sua língua de forma civilizada, arranjarei outro lugar para fazer meus negócios! E então, o que você estava dizendo?
Adequadamente repreendido e bastante intimidado, ele respondeu:
- Sr. Marx, o senhor pode não ter percebido, mas este já não é mais um mercado nacional. Estamos agora no mercado mundial. Estamos recebendo ordens de compra de todos os países da Europa, América do Sul e até do Oriente. Hoje mesmo de manhã já recebemos ordens do Industão para comprar mil ações dos Encanamentos Crane.
Um tanto cauteloso, perguntei:
- Você acha que esta é uma boa compra?
- Excelente – ele respondeu. – Se há uma coisa que todos nós temos que usar é encanamento.
(Eu poderia pensar em algumas outras coisas, mas não tenho certeza se estavam listadas na Bolsa).
- Isto é ridículo – eu disse. – Tenho alguns amigos índios em Dakota do Sul que não usam nenhum encanamento. (Ri com vontade da minha gracinha, mas ele não, portanto continuei). Você diz que eles estão enviando ordens de compra dos Encanamentos Crane, do Industão? Hummm. Se eles estão usando canos lá no longínquo Industão, devem estar sabendo de alguma coisa quente. Compre umas duzentas ações para mim. Não, compre trezentas.
À medida que o mercado continuava vertiginosamente subindo, comecei a ficar cada vez mais nervoso. O bom senso tinha me dito para vender, mas como todos os outros trouxas, eu era ganancioso. Detestaria soltar qualquer ação que com certeza dobraria em poucos meses.
Frequentemente leio histórias nos jornais de hoje sobre o público de teatro se queixando porque têm que pagar cerca de cem dólares por dois ingressos para My Fair Lady. (Pessoalmente, acho que vale). Bem, uma vez eu paguei trinta e oito dólares para ver Eddie Cantor no Palace.
Todos nós sabemos que Eddie é um excelente cômico. Até ele mesmo não reluta em concordar com isso. Ele estava com um espetáculo maravilhoso. Cantava Margie, Now´s the Time to Fall in Love e If You Knew Susie. Fazia o público morrer de rir com as piadas do momento e terminava cantando Whoopee. No vernáculo, ele era um “estouro”. Tinha aquele “algo a mais” magnético que separa um grande astro dos atores comuns.
Cantor era meu vizinho em Great Neck. Como velho amigo, no final do espetáculo fui vê-lo no camarim. Eddie é uma pessoa muito persuasiva, e antes que pudesse lhe dizer o quanto gostara de sua atuação, ele me puxou para dentro do camarim, fechou a porta, olhou em volta para ver se alguém estava escutando, e disse:
- Groucho, eu te amo!
Não havia nada de estranho nessa declaração. É simplesmente como as pessoas do teatro falam umas com as outras. Existe uma lei não escrita no teatro de que quando duas pessoas se encontram (ator e atriz, atriz e atriz, ator e ator ou quaisquer outras variações ou desvios sexuais), devem inflexivelmente evitar as saudações de rotina que as pessoas normais costumam usar. Em vez disso, devem cobrir um ao outro com termos de carinho que, em outros rincões da sociedade, estão reservados para os quartos.
Doçura – Cantor continuou, – o que você achou do meu espetáculo?
Olhei em volta, achando que talvez houvesse uma garota atrás de mim. Infelizmente não havia e compreendi que ele estava falando comigo.
- Eddie querido – respondi com genuíno entusiasmo, – você estava soberbo!
Eu já ia jogar outros buquês quando ele me olhou amigavelmente com aqueles olhos grandes e brilhantes, passou as mãos sobre o meu peito e disse:
- Querido garoto, você possui alguma Goldman-Sachs?
- Benzinho – respondi (dois podem jogar este jogo), – não apenas não possuo como nunca ouvi falar disso. O que é Goldman- Sachs? Algum tipo de farinha?
Ele me agarrou pelas duas lapelas e me puxou contra si. Por um momento, pensei que fosse me dar um beijo.
- Não me diga que você nunca escutou falar de Goldman-Sachs! – Ele disse incredulamente. – É apenas a maior e mais sensacional companhia de investimentos e uma holding de outras empresas gigantes.
Ele então olhou para seu relógio e disse:
- Hummm! Já está tarde demais, hoje. A bolsa já está fechada. Mas, meu bem, quando a manhã começar a clarear, pegue seu chapéu e corra até seu corretor e agarre umas duzentas ações da Goldman-Sachs. Acho que ela fechou hoje a cento e cinqüenta e seis... e a cento e cinqüenta e seis é um roubo!
Eddie então deu um tapinha na minha bochecha, e eu um tapinha na dele, e nos separamos.
Rapaz, como fiquei contente por ter ido cumprimentar Cantor nos bastidores. Imagine se eu tivesse ido no Palace naquele dia, nunca teria tido aquela dica. Na manhã seguinte, antes do café, corri até o escritório de corretagem assim que a bolsa abriu. Cobri vinte e cinco por cento de trinta e oito mil dólares e me tornei o feliz proprietário de duzentas ações da Goldman-Sachs, a maior Holding da América.

Comecei então a passar minhas manhãs sentado num escritório de corretagem, olhando para um grande quadro fervilhando com símbolos que eu não entendia. Se eu não chegasse cedo não conseguia nem entrar. Algumas das casas de corretagem estavam contando com mais público do que muitos teatros da Broadway.
Parecia que todo mundo que eu conhecia estava na bolsa. A maioria das conversas se limitava a comentar sobre quem havia ganho quanto na semana passada, ou sobre alguma ação que iria dar três por um de bonificação. O mecânico, o entregador de gelo, o açougueiro, o padeiro, todos eles na esperança de ficarem ricos, estavam jogando seus minguados salários – e, em muitos casos, as economias de suas vidas – em Wall Street. Ocasionalmente, a bolsa dava uma caída, mas logo se libertava dos especuladores da baixa e do bom senso e prosseguia em sua constante escalada.
De vez em quando algum profeta financeiro fazia uma declaração sombria, avisando ao público que os preços estavam fora de proporção em relação a seu valor, e para lembrar que tudo que subia um dia necessariamente teria que cair. Mas dificilmente alguém dava atenção a esses conservadores idiotas e suas estúpidas palavras de precaução. Até Barney Baruch, o Sócrates do Central Park e consumado bruxo financeiro, fez uma declaração de aviso. Não me lembro exatamente de suas palavras, mas eram mais ou menos assim: “Quando a bolsa se torna manchete de primeira página, é hora de cair fora”.
Eu não estava presente na Corrida do Ouro de 49. Quero dizer, de 1849. Mas imagino que a febre deveria ser bem parecida com a que agora infestava o país inteiro. O presidente Hoover estava pescando, e o resto do governo federal parecia totalmente alheio ao que estava acontecendo. Não tenho certeza se alguma coisa poderia ser feita se eles tivessem se intrometido, mas de qualquer maneira a bolsa saltava alegremente em direção à perdição.
Num determinado dia, a Bolsa começou a balançar. Alguns clientes mais nervosos ficaram agitados e começaram a descarregar. Isso aconteceu quase trinta anos atrás e não consigo me lembrar dos vários estágios da catástrofe que estava desabando sobre nós, mas da mesma maneira como todo mundo só queria comprar no começo da subida, todo mundo agora estava vendendo enquanto o pânico se generalizava. No começo a venda foi ordenada, mas logo o medo enxotou o discernimento e todo mundo começou a jogar suas ações na arena de touro dos especuladores na alta, que agora havia se transformado na arena de ursos dos especuladores na baixa, querendo salvar qualquer coisa que pudessem.
Então os corretores se contagiaram com o medo e começaram a gritar por margens adicionais. Esta foi uma boa piada dos corretores, pois a maioria dos negociantes já estava sem dinheiro e os corretores começaram a descarregar os títulos por seja lá o que fosse. Eu fui um dos mais tolos. Infelizmente eu ainda tinha dinheiro no banco e para evitar minha liquidação comecei febrilmente a assinar cheques para refazer as margens que rapidamente estavam se dissolvendo. Então, numa terça-feira espetacular, Wall Street jogou a toalha e entrou em colapso. A toalha é uma boa imagem, pois a esta altura o país inteiro estava chorando.

Algumas pessoas que conheci perderam milhões. Eu tive mais sorte. Tudo o que perdi foram duzentos e quarenta mil dólares. (Ou cento e vinte semanas de trabalho a dois mil dólares cada). Eu teria perdido muito mais, mas isto era tudo o que eu tinha. No dia do convulsivo colapso final, meu amigo, algumas vezes conselheiro financeiro e astuto negociador, Max Gordon, me telefonou de Nova Iorque. Em quatro palavras ele fez uma declaração que, com o tempo, acredito que estará entre as mais memoráveis citações da história americana. Estou me referindo àquelas frases imortais, como “Não abandone o navio”, “Não atire antes de ver o branco dos olhos deles”, “Liberdade ou morte!”. Essas frases se perdem em relativa insignificância diante da notável frase de Marx. Nunca tendo sido um tipo de muita conversa, desta vez ele ignorou até o tradicional “alô”. Tudo o que disse foi:
- Marx, a festa acabou!
Antes que eu respondesse, o telefone estava desligado.
Dentre todas as tolices escritas pelos analistas da Bolsa, acho que ninguém resumiu tão bem os destroços de maneira tão sucinta como meu amigo Gordon. Nessas poucas palavras, ele disse tudo. A festa tinha, realmente, acabado. Acredito que a única razão que me fez continuar vivendo foi o conforto de saber que todos os meus amigos estavam no mesmo barco. Até a miséria financeira, como outra qualquer, adora companhia.
Se meu corretor tivesse liquidado minhas ações quando elas começaram a despencar, eu teria salvo uma verdadeira fortuna. Mas já que eu não consegui imaginar que elas iriam continuar descendo. Comecei a pedir dinheiro emprestado dos bancos para cobrir rapidamente as margens que desapareciam. As ações da Anaconda Copper (lembram? Atrasamos o espetáculo trinta minutos para agarrá-las) se derreteram como as neves de Kilimanjaro (não pensem que não li meu Hemingway) e finalmente afundaram em 2 7/8. A dica quente do ascensorista de Boston sobre United Corporation mergulhou para 3 ½. Nós a tínhamos comprado a sessenta. A matinê de Cantor no Palace foi magnífica e valeu tanto quanto qualquer outra apresentação da Broadway. Mas Goldman-Sachs a cento e cinqüenta e seis dólares? Eddie, benzinho, por que você fez isso comigo? No fundo do poço da Bolsa ela podia ser arrematada por um dólar! 
 
Publicado no jornal HORA DO POVO, em 2010 

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A Carta-testamento: o maior libelo da História do Brasil ( 2010 )



CARLOS LOPES


No início de agosto de 1954, tudo indicava que o governo do presidente Getúlio Vargas havia derrotado a conspiração golpista que começara antes mesmo de sua posse (a quatro meses das eleições presidenciais, Carlos Lacerda escreveu em seu jornal, a Tribuna da Imprensa: “O sr. Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato à presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”.
Em junho, uma tentativa de impeachment não conseguira o apoio nem ao menos de toda a UDN – fora derrotada por 136 votos contra e 35 votos a favor.
Mas, em 5 de agosto, os golpistas conseguiram um cadáver, o de um major que fazia a segurança de Lacerda – e uma farsa, a história de um suposto atentado contra Lacerda, hoje completamente insustentável, após o trabalho dos repórteres Palmério Dória e Hamilton Almeida Filho (“Mataram o Presidente!”, Editora Alfa-Omega, 1978) e do pesquisador Ronaldo Conde Aguiar (“Vitória na Derrota – A Morte de Getúlio Vargas”, Ed. Casa da Palavra, 2004). Para uma síntese, ver HP, 28/08/2005.
No dia 24 de agosto, o presidente Getúlio sacrificava sua vida – e sua carta-testamento se tornaria o documento mais importante, mais candente e mais profundo de toda a História do Brasil. É este texto que hoje republicamos.
Getúlio havia explicitado a posição que posteriormente nortearia seu governo em maio de 1947, discursando no Senado. Disse ele:
“O que existe por parte de alguns homens em nosso país, arvorados em líderes da economia nacional, é apenas um acentuado complexo contra o trabalhador brasileiro. Acham que ele não deve ser operário nas fábricas, que o Brasil não deve ter indústria, que é indispensável destruir toda e qualquer possibilidade de trabalho fora dos campos. O Brasil, no conceito desses homens, deve ser uma nação essencialmente agrícola. O operário deve mudar de profissão, pelo que pretendem, ou então voltar ao regime de escravatura”.
Durante a campanha eleitoral, tornou mais nítidos os seus pontos de vista. Em 10 de agosto de 1950, discursaria em São Paulo:
“O que existe, defendida intransigentemente pelos velhos partidos, com novos rótulos, é a democracia política, baseada em leis que lhe asseguram o gozo de privilégios para oprimir e explorar o trabalho alheio. O trabalhismo brasileiro surgiu, assim, como uma afirmação contra a máquina montada em nome da liberdade política, com sacrifício da igualdade social”.
A questão fundamental era clara para ele há muito tempo. Em 1944, ao se referir às relações econômicas com os EUA no pós-guerra, havia enunciado:
“Não podemos admitir a hipótese de que terminada a guerra e depois de tantos sacrifícios venham a persistir nas relações entre os povos os mesmos processos condenáveis de dominação econômica. (…) E nem vale a pena pensar em que desorganização caótica, de revoluções e perturbações, mergulhará o mundo de novo se não for ouvida a voz da razão e não nos convencermos de que não é possível a hegemonia de nenhum povo ou raça, isoladamente, sobre os demais”.
A eleição, além da vitória esmagadora de Getúlio, confinou a UDN a três governos estaduais - Alagoas, Mato Grosso e Paraná. Num quarto, o Pará, a UDN venceu em coligação com o PSP, de Ademar de Barros, que apoiava Getúlio.
Apesar disso, a campanha golpista começou logo em seguida – para isso, funcionava no Rio de Janeiro o “Escritório Monsen”, uma suposta empresa de advocacia pertencente à Standard Oil, que tinha como um de seus principais membros o genro do diretor da Hollerith, uma subsidiária da IBM.
A questão, confessada depois pelo próprio Lacerda e por Eugênio Gudin – o mais notório defensor da nossa suposta “vocação agrícola” - era impedir que a política de Getúlio se tornasse “permanente”, se consolidasse como o programa do Estado e da Nação brasileira naquela nova fase da nossa história.
Para isso, a conspirata golpista seguiu por três lados: a tentativa de isolar o governo das Forças Armadas; a tentativa de privar Getúlio de qualquer órgão de comunicação com o povo; e a tentativa de isolá-lo do empresariado nacional.
O primeiro episódio não poderia ser mais claro sobre o caráter dos golpistas: a campanha contra o ministro da Guerra, general Newton Estillac Leal, por sua oposição a que o Brasil enviasse tropas para ajudar os EUA na agressão à Coreia. Em dezembro de 1951, o presidente decidiu, definitivamente, que o Exército Brasileiro não iria coadjuvar a agressão.
No mesmo mês, Getúlio enviou ao Congresso o projeto inicial de criação da Petrobrás. Isso iniciaria dois anos de luta pela aprovação.
Em 31 de dezembro de 1951, o presidente denunciou a escandalosa remessa de lucros das empresas estrangeiras. Logo em seguida, a 3 de janeiro de 1952, ele assinaria um decreto limitando em 10% dos lucros as remessas para o exterior. Os EUA, imediatamente, ameaçaram suspender todos os financiamentos ao Brasil. Mas o presidente manteve o decreto.
Enquanto isso, a oposição dos militares brasileiros a que fossem morrer pelos norte-americanos na Coreia e seu apoio à Petrobrás foram tachados de “comunistas”. A questão era atrair, neutralizar e intimidar oficiais com essa cruzada, para fazer com que o Ministério da Guerra ficasse em mãos cada vez menos firmes – em 1952, Estillac Leal sai do ministério.
Era impossível, no entanto, derrubar o governo sem isolá-lo do povo, portanto, tentar destruir o único jornal com que Getúlio contava, a “Última Hora”, de Samuel Wainer.
Em abril de 1953, Lacerda publicou uma acusação falsa, a de que Wainer não havia nascido no Brasil: a Constituição de 46 proibia a propriedade de órgãos de comunicação por estrangeiros ou brasileiros naturalizados. O serviçais do escritório da Standard Oil acusavam Wainer de ser... estrangeiro.
Em seguida, a acusação passou a ser a de que o jornal tinha obtido créditos bancários para se viabilizar. Exigiam da empresa que fosse a única no mundo a sobreviver sem empréstimos. Por fim, acusavam o governo de favorecer o jornal. Com sua falta de escrúpulos, Lacerda inventou um crédito de Cr$ 300 mil que teria sido concedido pelo Banco do Brasil ao “Última Hora” sem que Wainer tivesse que pagá-lo. Além disso, um aval cambial para importação de papel de imprensa, que o BB estava, por lei, obrigado a conceder, foi chamado de “empréstimo”.
No entanto, a “Última Hora” era o jornal que devia menos ao BB – a dívida executável era de 8 mil cruzeiros. Já os “Diários Associados”, de Chateaubriand, deviam CR$ 162 milhões ao BB; “O Globo”, somente nos dois anos anteriores, tinha obtido US$ 1.022.211,00 do BB em sucessivos empréstimos, dando sempre como garantia uma mesma velha impressora, e sem quitar durante esse período sequer o primeiro desses empréstimos. O próprio jornal de Lacerda, insignificante quanto à tiragem, era devedor do BB.
O próximo alvo foi o Ministério do Trabalho, encabeçado por João Goulart.
A 8 de março de 1953, o “The New York Times” iniciou, em editorial, a campanha contra Jango, mais jovem ministro da História da República, logo copiada pela imprensa golpista interna.
Em seu primeiro ano de governo, Getúlio havia aumentado o salário mínimo – que ficara sem nem ao menos reajuste durante oito anos - de 380 cruzeiros para 1.200 cruzeiros. Agora, na iminência de outro aumento, a ser concedido em maio de 1954, foi inventada uma peculiar teoria, segundo a qual o aumento não poderia ultrapassar a inflação, isto é, não poderia haver aumento real, sob pena do empresariado ir à falência.
Diante da gritaria que conseguiu envolver setores do empresariado e alguns militares de prestígio - o chamado “manifesto dos coronéis” -, Jango resolveu demitir-se para privar a conspiração de um alvo e impedir que o governo fosse paralisado. Mas o aumento de 100% foi decretado no dia 1º de maio de 1954 - e nenhuma empresa faliu por causa dele. Pelo contrário, representou a expansão do mercado interno para essas empresas.
Nesse primeiro de maio, olhando para algumas décadas mais tarde, Getúlio afirmou:
“Constituís a maioria. Hoje estais com o governo. Amanhã sereis o governo. A satisfação dos vossos reclamos, as oportunidades de trabalho, a segurança econômica para os vossos dias de infortúnio, o amparo às vossas famílias, a educação dos vossos filhos, o reconhecimento dos vossos direitos, tudo isso está ao alcance das vossas possibilidades. Não deveis esperar que os mais afortunados se compadeçam de vós, que sois os mais necessitados. Deveis apertar a mão da solidariedade, e não estender a mão à caridade. Trabalhadores, meus amigos! Com consciência da vossa força, com a união das vossas vontades e com a justiça da vossa causa, nada vos poderá deter”.

Carta-testamento

“Mais uma vez, as forças que os interesses contra o povo coordenaram novamente, se desencadeiam sobre mim.
Não me acusam, me insultam; não combatem, caluniam e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes. Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei um regime de liberdade social. Tive que renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se a dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a Justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar a liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobras, e mal começa esta a funcionar a onda de agitação se avoluma. A Eletrobras foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre. Não querem que o povo seja independente.
Assumi o governo dentro da espiral inflacionária, que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de cem milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre nossa economia a ponto de sermos obrigados a ceder.
Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma agressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar a não ser meu sangue. As aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem sentireis minha alma sofrendo a vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no meu pensamento a força para realização. Meu sacrifício nos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta.
Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com perdão. E aos que pensam que me derrotaram respondo com a vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo, não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate.
Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia, não abateram meu ânimo. Vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história.”
 
GETÚLIO VARGAS
 
Publicado no jornal HORA DO POVO em 2010
 
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